SANDRA STARLING

Tiros na madrugada

Treinando para a guerra civil estimulada pelo novo governo

Por Da Redação
Publicado em 06 de fevereiro de 2019 | 03:00
 
 

Há mais de 15 anos moro em um condomínio, cercado por montanhas e uma mata preservada, nas vizinhanças de Belo Horizonte. Nunca havia visto nada igual: dia desses, tiros foram ouvidos quase a manhã inteira.

Impressionada, à noite, sonhei que uma fila de homens e mulheres descia pela rua em frente à minha casa, todos armados de fuzis, escopetas, espingardas e revólveres, indo em direção à mata para começar a treinar para a guerra civil estimulada pelo novo governo... Acordei assustada.

Em 1992, recém-chegada à Câmara dos Deputados, presidi uma CPI destinada a investigar casos de violência contra a mulher.

Raras eram, à época, as delegacias especializadas de proteção à mulher. Com base nos inquéritos registrados nelas ou em processos abertos no Judiciário, levantamos a ocorrência de 336 agressões diárias contra mulheres e meninas em todo o país. Acabei de ler num jornal carioca, no último fim de semana, que, atualmente, a cada dois minutos, uma medida protetiva é concedida pela Justiça por causa de violência doméstica e familiar contra a mulher. E o que é pior: medidas insuficientes para impedir os agressores de se aproximarem das vítimas.

Algumas conclusões chocantes a que chegamos, há mais de 25 anos, podem explicar esse absurdo da ineficácia de medidas judiciais protetivas. A maior parte das agressões, estupros e assassinatos não era cometida em lugares ermos, por inesperados facínoras à solta. Não. A maciça maioria dos casos ocorria dentro de casa, e os agressores eram familiares, amigos e parentes das vítimas. Inclusive pais biológicos e padrastos. E maior espanto ainda: as vítimas não eram miseráveis, abrigadas em barracões nos cafundós. Encontramos casos horríveis acontecidos em bairros nobres de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e outras metrópoles. Casos como o da ex-mulher que recebeu tiros à queima-roupa, em Recife, agredida pelo ex-marido, um professor universitário. Sobreviveu, mas ficou paraplégica... Estranha coincidência: nos grandes centros, os registros aconteciam preferencialmente às segundas-feiras, dia seguinte ao fim de semana de porradas de maridos e companheiros bêbados.

O tempo passou. Agora, muitos levantamentos, oficiais ou não, são noticiados sobre o aumento de agressões contra a mulher, ou apenas sobre o aumento das queixas das agredidas, como ocorreu com a modelo Luiza Brunet, que escreveu, faz poucos dias, sobre sua triste experiência em jornal de grande circulação.

Juntando tudo isso, compreendi, num relance, o sentido do meu pesadelo. É que somei aos tiros ouvidos os tiros que, certamente, ouviremos na procissão de pessoas movidas pelo anseio de se protegerem e que se aproveitarão do decreto presidencial que lhes permite ter até quatro armas em casa ou no serviço.

Não é isso o que indica o crescimento desvairado de compra de armas e até de mulheres aprendendo a atirar? Quantas mulheres mais precisarão ser agredidas ou mortas para que a selvageria reine de vez neste país?