Sebastiao Nunes

O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.

Ana Martins Marques e a odisseia de Penélope

Publicado em: Dom, 18/04/10 - 00h00

Drummond, o mestre de todos nós, sabia como é difícil chegar ao poema. Em "Procura da Poesia", aconselha: "Penetra surdamente no reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário./ Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.". Eu deveria parar esta citação por aqui, mas não resisto, e continuo mais um pouco: "Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam./ Espera que cada um se realize e consume/ com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio.".

Este é um dos caminhos e um dos segredos. Chegar a eles exige maturidade, árduo aprendizado de vida e linguagem, como sugeriu outro dos grandes, Eliot. É a iluminação pela persistência. Mas como se explica o rompante de um Castro Alves, de um Rimbaud, meninos arrebatados, que antes dos 20 anos já estavam maduros e senhores da linguagem e da vida? É a iluminação pela clarividência.

Ana Martins Marques pertence à primeira categoria. Sabemos disso pelo cerco paciente que faz às palavras, pela lenta entrega dos sentidos, se e quando entrega, pois na maioria dos casos existe apenas alusão, e tudo é grande poesia.

A VOZ DO SILÊNCIO
Seu livro de estreia, "A Vida Submarina" (Scriptum, 2009), já diz muito no título. Remete ao mundo silencioso e obscuro de vidas insondáveis, recuperado pela força da linguagem poética. Por exemplo, em "Penélope (I)": "O que o dia tece/ a noite esquece./ O que o dia traça/ a noite esgarça./ De dia, tramas,/ de noite, traças./ De dia, sedas,/ de noite, perdas./ De dia, malhas,/ de noite, falhas.".

É a suave queixa da rainha abandonada por seu rei entre pretendentes nobres, ou melhor, é a aguda constatação das perdas que corroem os laços humanos durante toda uma vida de encontros e desencontros, por mais acertados que sejam. Na odisseia dessa reflexiva Penélope, em seis poemas intercalados nas 142 páginas do livro, o que acompanhamos é a surda divagação feminina sobre a incerteza dos relacionamentos, como em "Penélope (II)": "A trama do dia/ na urdidura da noite/ ou a trama da noite/ na urdidura do dia/ enquanto teço:/ a fidelidade por um fio.".

Não se trata, o bom leitor de poesia percebe, de jogo de palavras, tão comuns nos que não penetraram "no reino das palavras", mas da justaposição de sentidos e aliterações e ritmos, para a construção de um momento invulgar da percepção das falhas e das perdas, quando a espera ameaça sucumbir ao desalento.

A VOZ NO DESERTO
Sim, eu poderia tentar - apenas tentar - uma análise mais ampla de toda a poesia de Ana, mas tenho dois problemas. O primeiro é a falta de espaço. O segundo é a impossibilidade de recuperar, exceto pela leitura, todo o fascinante universo verbal e mental que a sonoridade de sua voz faz ecoar.

Então continuo, focando apenas a saga de Penélope, agora a III: "De dia dedais./ Na noite ninguém.". Dez anos de contenção e espera em dois versos de densidade quase inconcebível, por isso mesmo carregados de sentido, na oposição dedais/ninguém, em que se pode ler demais em vez de dedais. Nessa rigorosa síntese, em apenas dois curtíssimos versos, releva-se a densa carga poética: o dia de inumeráveis trabalhos (dedais) e recheado de pretendentes (demais), contra o vazio da noite (ninguém).

Ler poesia é penetrar não só o reino das palavras, mas também desvendar os segredos das linguagens, de todas as linguagens. E intuir, numa avalanche de sentidos escorregadios, o que o poeta escondeu em seu jogo mágico de espelhos.

A VOZ EXPANDIDA
Em "Penélope (IV)", a voz sussurra: "E ela não disse/ já não te pertenço/ há muito entreguei meu coração ao sossego/ enquanto seu coração balançava em viagem/ enquanto eu me consumia/ entre os panos da noite/ você percorria distâncias insuspeitadas/ corpos encantados de mulheres com cujas línguas/ estranhas eu poderia tecer uma mortalha/ da nossa língua comum./ E ela não disse/ no início ainda pensei em você/ primeiro como quem arde diante de uma fogueira/ apenas extinta/ depois como quem visita em lembrança a praia da infância/ e então como quem recorda o amplo verão/ e depois como quem esquece./ E ela também não disse/ a solidão pode ter muitas formas,/ tantas quantas são as terras estrangeiras,/ e ela é sempre hospitaleira.".

Ao contrário de "Penélope I, II e III", ela agora se mostra confessional em sua queixa, vivendo aqui não mais uma "Odisseia" pelo avesso, mas sua "Ilíada" silenciosa de lembranças, batalhas inglórias contra o tempo que passa e transforma em poeira a esperança e mata pela ausência os desejos.

A VITÓRIA NO CANSAÇO
Nos dois últimos poemas da série, Ana/Penélope retoma a "Odisseia", em sua viagem pelos sentidos e pelo conhecimento, como em "Penélope (V)": "A viagem pela espera/ é sem retorno./ Quantas vezes a noite teceu/ a mortalha do dia,/ quantas vezes o dia/ desteceu sua mortalha?/ Quantas vezes ensaiei o retorno -/ o rito dos risos,/ espelho tenro, cabelos trançados,/ casa salgada, coração veloz?/ A espera é a flor que eu consigo./ Água do mar, vinho tinto - o mesmo copo.". Porque agora ela diz na primeira pessoa, assumindo as três faces dessa Eva feita de espera/nostalgia/solidão.

E então ela chega, como se de muito longe, do fundo do tempo, da memória e do aprendizado, para resumir longos anos nos quatro versos admiráveis de "Penélope (VI)": "E então se sentam/ lado a lado/ para que ela lhe narre/ a odisseia da espera.".
O círculo se fechou. É o último poema do livro como poderia ser o primeiro. É a luminosa voz da mulher diante do homem que volta. Ele foi, ela ficou. Mas a "Ilíada" dele, ou sua "Odisseia", não foram maiores que as dela, vividas ambas em imaginação, mas comparáveis em intensidade e duração.

Se esta poesia não é extraordinária, juro que não sei o que será.


Mais um verso de Ana: "Tocas com a boca o contorno exato das horas" ("Insônia")

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