SEBASTIÃO NUNES

Delírios de Franz Kafka no dia da morte

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 04 de janeiro de 2015 | 04:00
 
 
O melhor remédio do mundo, que ninguém esquece, é o penúltimo beijo da última namorada Intervenção sobre imagem de lábios vermelhos

Torcendo nas mãos um lenço de seda, Dora Diamant, namorada de K., soluçava. Vestida de preto, sentada numa poltrona do consultório, seus ombros estreitos oscilavam para a frente e voltavam de repente, como se ela acordasse bruscamente de um cochilo. Atrás da mesa, numa poltrona alta, o doutor Hoffmann, diretor da clínica, mastigava a ponta de um charuto enquanto ouvia Max Brod. Este dizia:

– Reconheço, doutor, que o caso é delicado. Sem poder engolir, K. corre o risco de morrer de fome, como o personagem de um conto que tirei dele hoje. Só falta ele se imaginar transformado num inseto asqueroso.

Os três riram.

NO QUARTO
K. não tinha fome. A garganta doía. Na mesinha de cabeceira, entre frascos de remédio, um prato de sopa esfriava e alimentava moscas.

– Morfina agora, posso? – sussurrou para a enfermeira.

– Está doendo muito? – perguntou ela. – Minhas instruções dizem que só devo aplicar morfina quando a dor estiver insuportável.

– E quem decide quando é ou não é insuportável?

Os dois riram.

NO CONSULTÓRIO
Dora voltou a soluçar e o doutor Hoffmann a mastigar seu charuto. Max Brod tirou do bolso um manuscrito.

– Vejam vocês. K. não pode engolir e, como disse, acabo de tirar dele um conto, que intitulou “O Artista da Fome”. É a história de um jejuador que passa 40 dias e noites sem comer nada. Quando seu empresário quer interromper o jejum, ele protesta, dizendo que aguentaria muitos dias ainda.

Os três riram.

NO QUARTO
– Talvez não esteja realmente insuportável agora – disse K. – É como uma dor de dente. Se não penso nela, não dói.

– Então por que não pensa que é dor de dente?

– Todas as vezes que tento, ela volta. Como se me chamasse: “Ei, olha eu aqui, estou na sua garganta e não no dente. Será que você me esqueceu?”.

Os dois riram.

NO CONSULTÓRIO
Max Brod disse:

– Vou ler pra vocês um trecho do conto, que lembra a situação de nosso amigo neste momento. Vejam se não é parecida.

“– Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum – disse o artista da fome.

– Nós admiramos – retrucou o inspetor. – Por que não haveríamos de admirar?

– Mas não deviam admirar – disse o jejuador.

– Bem, então não admiramos – disse o inspetor. – Por que é que não devemos admirar?

– Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo – disse o artista da fome”.

Os três riram.

NO QUARTO
– Parece até que estou jejuando – disse K.

– Pois não devia – disse a enfermeira. – Vou obrigá-lo a comer um pouco. Depois aplico a morfina.

– Por que não aplica a morfina e depois me obriga a comer um pouco?

Os dois riram.

NO CONSULTÓRIO
– Rimos antes da hora – disse Max Brod. – Ainda não terminei a leitura. Continua assim:

“– Bem se vê – disse o inspetor. – E por que não pode evitá-lo?

– Porque eu – disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. – Porque eu não pude encontrar um alimento que me agradasse. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e teria me empanturrado como você e todo mundo.”

Os três riram.

NO QUARTO
– Por que não fazemos diferente? – disse K. – Você me dá um beijo bem gostoso, a dor passa, e então me obriga a comer um pouco.

– Safadinho você, não é? – disse a enfermeira. – E quem disse que eu gostaria de beijá-lo?

– Ninguém. Mas o efeito é mais rápido que o da morfina.

Os dois riram.

NO CONSULTÓRIO
A enfermeira entrou correndo.

– K. morreu. Pediu que eu lhe desse um beijo em vez de aplicar morfina.

– E você o beijou? – perguntou o doutor Hoffmann.

A enfermeira balançou a cabeça, concordando.

– Fez muito bem – disse Max. – Beijo é de fato muito melhor do que morfina.
Os quatro riram.