Sebastiao Nunes

O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.

Machado de Assis traz versos do túmulo de Carolina

Publicado em: Dom, 18/01/15 - 03h00
“Benditas sejam as fotografias,/ Que eternizam o que os vermes corroem!” – Versos do último poeta romântico | Foto: Intervenção sobre fotos de Machado e Carolina

O senhor idoso, baixo e recurvado, apeou-se do tílburi diante do portão principal do cemitério São João Batista. Tirou o chapéu e caminhou lentamente pela álea principal até o jazigo 1.359, onde leu, na pequena placa de mármore: “Carolina Augusta Novaes – Porto-1835 – Rio de Janeiro-1904”. Fazia um ano da morte. Eram oito horas da manhã e o sol começava a picar a pele. Outubro é um mês quente. Tirou de um embrulho pardo um ramalhete de flores que depositou sobre o túmulo. Que flores? Nem se lembrava, não tinha memória para flores. Passara pelo florista, ainda no Largo do Machado, e resolvera comprá-las. Eram flores. Bastava que fossem flores.

NASCE UM SONETO
Olhando para o túmulo, veio-lhe à lembrança o célebre verso de Camões: “Alma minha gentil, que te partiste...” Quem sabe?

“Carolina, diante do túmulo em que estás...” Não. Não fica bem um alexandrino elegíaco. E o ritmo falha totalmente. Melhor um decassílabo: “Carolina, ao pé do túmulo em que descansas...” Ainda não, tem 11 sílabas. Talvez “Carolina, diante do leito derradeiro...” Voltou a ser alexandrino.

O senhor idoso, baixo e recurvado, tirou o lenço do bolso do colete e enxugou a testa. Guardou sem pressa o lenço, sempre olhando para o túmulo.

“Querida! Ao pé do leito derradeiro...” Melhorou. Deixar assim por enquanto. E o título? Parece que fica bem “A Carolina”. Em vez de um título genérico, um título direto. Como um bilhete derradeiro. Ou um beijo de despedida. Ah, velho, pensou consigo, além de velho e viúvo, estás ficando bobo, lerdo e sentimental. Só faltava isso, depois de tua guinada realista, guiado pela fada que foi ela.

SEGUE O SONETO
O cemitério continuava quase deserto àquela hora. Aqui e ali alguém deitava flores a um jazigo ou varria com as mãos pétalas secas. Outros se ajoelhavam, cabeça baixa, e era como se rezassem.
O senhor idoso, baixo e recurvado, não tinha religião. Não conseguia acreditar em nada, nem mesmo no ser humano. Trouxera flores porque todos traziam flores. Espírito de imitação. Macaquice. Riu-se para dentro.

“Querida ao pé do leito derradeiro/ Em que deitada sonhas com a esperança...” Não, tem 11 sílabas, também não serve. “Em que deitada sonhas c’a esperança”. Podia ser, mas fazer uma única sílaba poética com “c’a es” parece um tanto forçado. “Em que descansas da longa vida que tiveste...” Ah, ah, ah... Riu-se novamente baixinho. Estou ficando velho poeticamente, resmungou para dentro. São 13 sílabas. Quem sabe “Em que descansas de tua longa vida...” Melhorou, mas ainda não me agrada. Ah, sim: “Em que descansas desta longa vida”. Sim, talvez fique assim.

VOLTA PARA CASA
Lentamente retornou, o senhor idoso, baixo e recurvado, da beira do túmulo para o portão principal do cemitério. Havia recolocado o chapéu para evitar o sol forte das nove horas. Encostado a uma árvore, o cocheiro cortava as unhas. Percebeu quando o velho chegou e, de um salto, abriu-lhe a porta do carro.

O velho entrou, o cocheiro estalou o chicote, o único cavalo partiu a trote. Sabia o cocheiro que velhos sempre voltam para casa depois de visitar cemitérios. Fazer o quê, na rua, a essa hora? O cocheiro não era velho, mas era sábio.

Atravessou Botafogo, passou pelo Catete, contornou o Largo do Machado e entrou, um pouco adiante, na rua Cosme Velho. Parou diante do número 18. Dentro do tílburi, o passageiro parecia dormir.

“Vim aqui e voltarei sempre, minha doce querida...” Quatorze sílabas agora. Onde estou com a cabeça? “Vim aqui” é horrível! E minha prática de versejar? Foi-se com Carolina? Ah, sim: “Aqui venho e virei, pobre querida...”. Muito melhor.

O cocheiro estalou o chicote no lombo do cavalo. O passageiro não dormia e entendeu. Saltou, pagou e tirou a chave do bolso do colete.

NA BIBLIOTECA
O senhor idoso, baixo e recurvado, subiu lentamente os três degraus da escada. Por hábito – não chovera – limpou os pés no capacho. Abriu a porta com a grande chave de ferro fundido. A folha rangeu, com um gemido triste. O velho entrou e fechou a porta. Chapéu no porta-chapéus, bengala no porta-bengalas. Despiu o colete, ficando em camisa. Afrouxou o colarinho alto. Desatou a gravata, que tirou.

Entrou na biblioteca e sentou-se – de pernas esticadas – na poltrona favorita. Estava só, só como nunca estivera, nem no dia seguinte à morte de Carolina.

“Aqui venho e virei, pobre querida,/ Trazer-te meu coração por companhia...” Não serve, não rima. E ainda mais: tem 11 sílabas. Acho que encontrei: “Trazer-te o coração de companheiro”. Está pronto o primeiro quarteto. O velho não queria chorar, mas soluçou. Veio de dentro, sem controle.

PRIMEIRO QUARTETO
Repassou mentalmente a composição iniciada, pois nunca escrevia enquanto compunha, e era sempre da mesma maneira que criava seus versos:

“Querida! Ao pé do leito derradeiro,/ Em que descansas desta longa vida,/ Aqui venho e virei, pobre querida,/ Trazer-te o coração de companheiro.”

Parece-me correto, pensou. Passou os olhos cansados pelas estantes.

Agora só tenho vocês, pensou de novo. Não, não tinha só livros. Tinha amigos, a Academia, muito que escrever, algum reconhecimento público...

Mas estava só. Carolina tinha partido. O coração estava partido, como num poema romântico. No fundo, continuou pensando, guardamos todos algum romantismo no fundo da alma.

Principalmente quando estamos assim: velhos, recurvados, picados de dores, mordidos de lembranças. Ora, que seja: ao perdedor, as cascas das batatas!

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