SEBASTIÃO NUNES

No dia de aniversário de tua morte

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 27 de setembro de 2009 | 00:00
 
 

Otávio Ramos morreu há quatro anos, no dia 23 de setembro de 2005. Era tão discreto que se deitou vestido e foi encontrado pelo filho José na manhã do dia seguinte, morto. O computador estava ligado e ele tinha a expressão tranquila de quem apenas resolvera descansar um pouco. Em 25 de maio completara 56 anos e não parecia doente, embora os amigos próximos soubessem que não era bem assim. Era diabético e de vez em quando, talvez para fugir da depressão ou de seus fantasmas, passava a noite sentado, bebendo cerveja, sozinho. Como fizera exatamente uma semana antes.

Não é de causar estranheza. Eu o considerava excelente amigo, um tanto pela rara propriedade de ficar calado sem incomodar a si mesmo ou aos outros. Como disse alguém, verdadeiros amigos são os que passam horas lado a lado em silêncio, como fazia Otávio. Raramente levantava a voz e quase nunca se irritava. Mesmo nesses casos, era discreto na voz alta e mais discreto na irritação. Um tom acima, talvez, um pouco de aspereza na entonação, sutilezas que só os amigos íntimos percebiam.

O DOM SILENCIOSO. Logo na abertura do livro "O Juízo Final", que publicou em 1997, usou uma frase magnífica, ele que era extraordinário garimpeiro de pedras preciosas alheias: "Todos os anos, passas, inconscientemente, pela data de aniversário de tua morte". A expressão é de Alain Borer, em "Rimbaud na Abissínia", e causa arrepios na espinha de todos os que param para pensar em seu significado. Essa frase foi usada embaixo de uma foto sua, de sorriso um tanto irônico, no "santinho" distribuído pela família na missa de sétimo dia.

Dentro do folder de uma dobra, um trecho quase todo dele, também magnífico: "O vazio causado por sua falta jamais será preenchido. E enquanto o tempo não se encarregar de dissipar o fantasma de meu filho nas brumas da memória, a lembrança de sua vida soará no coração ora como tortura, ora como salvação. Embora eu saiba que a dor é, intrinsecamente, uma experiência pessoal e subjetiva, por uma questão de sobrevivência psicológica e emocional, posso, mesmo que em vão, tentar transcender a morte pela literatura. Tentar tornar ‘suave meu tormento, doce, minha amargura, agradáveis minhas penas e aprazível, minha tristeza.’ Todos podem constatar que, desde Homero, morte e literatura estão indissoluvelmente ligadas".
Para quem acompanhou a doença de seu filho João, morto aos 26 anos, nada mais doloroso que essa pungente confissão de impotência sem queixa ou, no máximo, de serena teimosia diante do fato de ter, um dia, de esquecer.

Seu último livro, ainda inédito e que deverá ser publicado em 2010, talvez no aniversário de seu nascimento, chama-se exatamente "O Dom Silencioso". Porque essa era a essência de Otávio, sua marca mais pessoal e obstinada. A de negar-se à plena exposição à luz do dia, ou aos holofotes do reconhecimento. Timidez? Não. A melhor palavra para esse dom especial é indiferença.

A LITERATURA SILENCIOSA. Otávio Ramos publicou diversos livros de poesia e ficção, quase todos pela minha própria editora, a Dubolso, cuja função primordial foi, enquanto existiu, lançar bons autores sem espaço nas grandes editoras comerciais, e sem o ridículo puxa-saquismo necessário para romper as barreiras do anonimato.

Como no meu próprio caso, Otávio também preferia diagramar ou, pelo menos, exercer controle quase absoluto sobre o que seria publicado. E fez isso, com paciência e teimosia, em todos os livros. Desde a velha prancheta, sobre a qual nos debruçamos para, de esquadro e régua nas mãos, diagramar e ilustrar "Gibi", por exemplo, de 1995, ou "Obras Completas - Tomo I", de 1990, até os livros diagramados em computador, foi uma parceria constante e instigante. Sendo tão exigente quanto eu na produção e nos detalhes de cada página, às vezes me entregava os originais quase prontos, faltando apenas as interferências do profissional diagramador, que ele não era, e que eu me esforçava para ser.

Todos nasceram assim. Era assim que ele queria e não se importava com o que resultaria depois da publicação. Mesmo porque, exceto no último livro publicado, quando por insistência minha aceitou uma coedição entre Dubolso e Ciência do Acidente, outra nanica, do paulista Joca Reiners Terron, ele acreditava - e me disse - que sua literatura estava destinada a se apagar cada vez mais com o passar do tempo. O dom silencioso teimava em reivindicar uma literatura silenciosa.

PISE DEVAGAR. Será que Otávio acreditava nisso? Penso que sim. Aliás, ele não fazia mais do que ser honesto consigo mesmo, com aguda consciência do fluir do tempo. Porque exceto em raros - raríssimos - casos, todos os artistas de todas as áreas estão destinados ao limbo, mais cedo ou mais tarde. Ao limbo do esquecimento.

Por isso, Otávio era acima de tudo um brincalhão, que usava sua arte para brindar os amigos com um punhado de pérolas, próprias ou alheias, que colhia e redistribuía com fartura, Godard que o diga.

Um de seus títulos mais brilhantes, "Pise Devagar, Você Está Pisando nos Meus Sonhos", reproduz o verso final de belíssimo poema de Yeats, "tread softly, because you tread on my dreams". A partir de títulos como esse, ou de inumeráveis citações espalhadas sem cuidado ao longo dos livros, com autoria revelada ou pistas falsas para que iniciados detectassem autorias e origens, tudo era possível.

Assim viveu, escreveu e morreu Otávio: discretamente. Com plena consciência de sua limitação como homem, como escritor e como duração. Não queria nada, a não ser um pouco de amizade, e essa mesma com parcimônia, discrição e pouco ou nenhuma insistência. Era o grande amigos das pequenas aparições.

De meus melhores companheiros, dos que conto nos dedos, Otávio era talvez o mais próximo, pela maneira silenciosa e serena das aproximações. No fundo, era um sujeito de pouca - ou nenhuma - esperança. Como todos os radicalmente lúcidos.

Colagem sobre foto e capas de livros de Otávio Ramos

Otávio acreditava na amizade e na literatura, mas desconfio que desconfiava do amor