SEBASTIÃO NUNES

O melhor escritor do mundo você nunca leu

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 01 de dezembro de 2013 | 03:00
 
 
Intervenção sobre calendário asteca (cerca de 1480)

Robert Bréchon, na biografia de Fernando Pessoa, “Étrange Étranger”, cita antigo sonho de Michel Foucault: ter o poder de resgatar todos os manuscritos recusados pelos editores, para deles fazer documentos humanos e obras-primas literárias. E acrescenta: “Os escritores profissionais, cujo trabalho é instruir, informar ou divertir, dirigem-se hoje a um ‘público-alvo’, talvez depois de feito um estudo de mercado. Mas os outros, os autores de obras de criação pura, de livros inúteis, os poetas? Por que, para quem escrevem?”

E continua: “Compreendi isso melhor ao ver, nos museus, baixos-relevos que inicialmente se encontravam escondidos no interior dos templos, em lugares onde nenhum olhar humano poderia, em circunstâncias normais, ter oportunidade de contemplá-los. Os artistas tinham esculpido para os deuses. Os poetas também escrevem para os deuses, ou seja, para uma hipotética consciência do mundo, sem a qual nada do que fazemos na Terra tem sentido algum”.

Estou ajudando a organizar o novo livro de poemas de Romério Rômulo, um dos poetas vivos mais importantes do Brasil, cujo título ainda não posso revelar. É um conjunto extraordinário de achados literários em torno de um único tema, que brinca com a linguagem como fizeram todos os poetas maiores.

Acontece que, como escritor-editor, sempre tive uma visão muito clara do mercado editorial. A queixa de Bréchon faz sentido, mas é preciso ir além dela, criando condições e estratégias para que a boa literatura possa ser conhecida.

Chegamos a um impasse. Conheço editores que se rotulam, com orgulho, vendedores de livros, e só. Conheço editores que nada entendem de livros, apenas de comércio. Também conheço autores que colecionam dezenas de prêmios e cuja obra está esquecida, ou quase. E ainda outros que nunca ganharam sequer menção honrosa e se tornaram referência.

Certa vez, faz alguns anos, um escritor muito novo teve um livro medíocre publicado por uma editora de certo prestígio. Homônimo de autor famoso, ganhou o prêmio Jabuti, dado ao nome, não à obra. Ficou por isso mesmo. Ano passado, no mesmo concurso, aconteceu grave conflito na atribuição de dois prêmios, conflito impossível de resolver. Parece que todos se conformaram com o resultado absurdo, mas não conferi.

Como desencaroçar esse angu? Infelizmente, não há como. Não há como plantar mata-burros para impedir a entrada de “falsos” editores. Mesmo porque eles são hoje a imensa maioria dos que ditam as regras do jogo. A tragédia editorial é a mesma que ataca, como praga invencível, todos os produtores culturais, sérios ou não. O que chamo de “sérios” são aqueles que procuram dar à cultura seu verdadeiro lugar: o de trilha estreita para a consciência do mundo e o diálogo com os deuses, como sugeriu Bréchon. Os “não sérios” são aqueles para quem poemas ou músicas são como batatas e pepinos.

Não, longe de mim menosprezar vendedores de pepinos e batatas, ou diminuir sua importância. Nenhum de nós viveria sem batatas – ou alimento equivalente –, enquanto quase todos podem passar sem música e, principalmente, podem viver sem poesia.

Infelizmente – e não serei saudosista – a profissão de editor está deixando de existir e sendo substituída pela de publisher, que traduzo para uso pessoal como “garimpeiro de tendências”. Antes, partia-se da obra para o leitor. A equação se inverteu: parte-se agora do consumidor (e não mais leitor) para a obra.

Não existe mais literatura. Existe o produto livro, que custa X, será vendido por Y, dando W de lucro numa tiragem de Z exemplares. Quanto maiores forem W e Z, melhor. Quando mais rápido Z estiver esgotada, melhor. Parte-se para uma reimpressão, com a esperança de que W continue crescendo e que o produto demore a ser esquecido pela mídia.

Escrevi mídia? Pois é. Farinhas do mesmo saco. Desde que a imprensa existe, também existe uma suruba permanente entre jornalistas e escritores. Ou os jornalistas são também escritores ou os escritores se tornam jornalistas, de modo a matar dois coelhos de uma cacetada: publicar e garantir espaço para divulgação. E não pense, meu bem, que estou tirando o meu da reta. Nunca fui ingênuo quanto às regras do jogo. Como dizia Brecht, comunista de carteirinha, “não se pode abrir a guarda no jogo do capitalismo”, ou algo por aí.

Volto ao sonho inatingível de Foucault. Quase todo escritor já teve obra recusada por editores. Alguns dão sorte, ganham um prêmio importante – loteria pura, como outra qualquer – e despertam cobiça. Outros têm parentes influentes ou sócios em editoras grandes, e é a sopa no mel. Etc. Não tendo pistolão nem parentela, aí é que a porca torce o rabo.

Até o século XIX poucos escreviam (o analfabetismo era gigantesco) e editar era caríssimo, exigindo quase sempre o famoso mecenato, que entre nós voltou com as leis de incentivo cultural. Mesmo naquela época muita porcaria foi publicada, inclusive porque o mercado é invenção medieval, mais ou menos contemporâneo de Gutenberg.

No século XX o caldo entornou. Mimeógrafo, Xerox, offset barato, produtividade acelerada, custos decrescentes etc. Lenta, mas progressivamente, a cada ano ficou mais fácil e barato editar. Todo semianalfabeto passou a se julgar escritor, com todo o direito, é claro, e não sem razão. Mas a competição aumentou.

Quem ganha? Quem perde? Hoje, quando basta tirar a roupa para ganhar fama durante 15 segundos, perdem os tímidos, os pouco agressivos, os inseguros. Ganham os atrevidos, os caras de pau, os que sabem se promover. É nessa seara que os publishers vão colher as batatas de sucesso. Conseguem até, às vezes, garimpar um tímido que faz sucesso ou falhar com um agressivo que lhes passa a perna – e não vende.

A guerra está mais feia, pesada e suja. Quem afinar dança. Quem for delicado, sensível, ingênuo cai do cavalo. É preciso aceitar o desafio da competição e travar batalhas pontuais, buscando dominar o terreno e minar as forças do inimigo (sim, do inimigo). Exatamente como nas guerrilhas de tantos sonhadores.