Sebastiao Nunes

O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.

Quantos negros corruptos você conhece? - segunda parte

Publicado em: Dom, 14/12/14 - 03h00

Continuo passeando pelo livro “Corrupção – Ensaios e Críticas”, da Editora UFMG. No ensaio “Passado, presente e futuro da corrupção brasileira”, já citado, José Murilo de Carvalho discute o significado histórico do termo:

“Se a palavra é a mesma, é preciso perguntar se a coisa continua inalterada. A corrupção de hoje é a mesma que a de 100 anos atrás? Há mais corrupção hoje do que antes? Aumentou a corrupção ou aumentou a percepção dela e a postura diante dela?”.

Com aguda visão histórica, explica: “Mudou o sentido da corrupção. As acusações (...) dirigidas ao Império e à Primeira República não se referiam a pessoas, mas principalmente ao sistema. (...) A partir de 1945, no entanto, houve alteração semântica no conceito. A oposição a Vargas, comandada pelos políticos da UDN, voltou suas baterias contra a corrupção individual. (...)

Corruptos eram os indivíduos, os políticos getulistas, o próprio Vargas. Expulsos o presidente e seus aliados, voltaria a correr água cristalina nas tubulações da República”.

Publicada em 2008, tal conclusão poderia ser assinada hoje.

“Outro fator agravante” – prossegue José Murilo de Carvalho – “foi a construção de Brasília. A nova capital libertou congressistas e executivos do controle das ruas, ampliando a sensação e a realidade da impunidade. Brasília tornou-se uma corte corrupta e corruptora.”
Sim. Embora existente desde sempre e, no Brasil, desde a colonização, a prática da corrupção se acentuou, se consolidou e se tornou “lícita” durante a construção de Brasília. Ou alguém acha que boa parte das centenas de empresas e milhares de pessoas se meteu na aventura da Nova Capital para enriquecer honestamente?

O PASSADO CONDENA

Responsável pelo ensaio “A corrupção no Brasil colônia”, o historiador Luciano Raposo Figueiredo disseca a carcaça de nossos bisavós.

“O cargo público ou ofício na administração colonial pertencia ao rei, por ser um atributo de sua soberania. (...) Seguindo conveniências, el-rei poderia vender, arrendar ou cedê-los, temporária ou vitaliciamente.”

O melhor vem a seguir:
“A política régia de remunerar mal seus servidores tornava tácita a possibilidade de complementação com ganhos relacionados à sua atividade.” Citando Charles Boxer, revela o esquema: “Se a coroa não tolerasse alguma margem de lucro por parte dos funcionários, ela sequer encontraria candidatos aos cargos”.

E vai fundo na lambança de nossa ancestralidade: “Magistrados, capitães, governadores, vice-reis, meirinhos, contratadores e eclesiásticos não desperdiçavam chance de cultivar ganhos paralelos”.
Citando Arno e Maria José Wehling, avança: “Se a fidelidade política e doutrinária era indiscutível, o peso dos interesses pessoais ou de grupo foi muito grande. Quando juízes dilatavam decisões para beneficiar-se financeiramente, clérigos cobravam exageradamente por seus serviços religiosos, militares recebiam dinheiro para ‘esquecer’ recrutas que deveriam ir para as guerras do sul, escrivães e tabeliões aumentavam as custas, todos justificavam-se explicitamente pelos baixos rendimentos dos ofícios e implicitamente pelo clima predatório de ‘fazer a América’, que caracterizou boa parte da colonização”.

Citando novamente Charles Boxer, acrescenta; “As queixas acerca da rapacidade e da venalidade dos funcionários governamentais em geral (...) são um tema constante da correspondência particular e oficial durante mais de três séculos”.

Mais de três séculos! – e só recentemente a sujeira se tornou visível.

E LA NAVE VA

Continuando, Figueiredo cita um trocadilho do padre Antônio Vieira, o grande escritor de nosso setecentismo: “Alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens”.

Prossegue com um trecho de sermão no primoroso estilo de Vieira: “El-rei manda-os tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar... Este tomar o alheio, ou seja, o do Rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes e modos e instrumentos de tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza muito perigosa, a fazem por momentos mais mortal. E senão, pergunto...: Toma nesta terra o ministro da Justiça? – sim, toma. – Toma o ministro da fazenda? – sim, toma. Toma o ministro da milícia? – sim, toma. (...) e como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração (...) fica tomado todo o corpo e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie”.

FORA DOS EIXOS

“No giro permissivo da administração da América portuguesa” – conclui Luciano Raposo Figueiredo – “os recursos que o Estado deixou de receber irrigaram o patrimônio de grupos sociais, redes, famílias que o Novo Mundo atraiu. Sob extrema dinâmica que equilibrava estabilidade e instabilidade política, os desgastes e tensões gerados pelos abusos, ambições e rapacidade dos servidores régios feriam os ideais de bom governo no ultramar”.

SANTOS DE PAU OCO

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, versejava Camões em sua convulsionada Lisboa seiscentista. Só não mudou o gosto pela apropriação de bens públicos por funcionários corruptos e figurões corruptores.

O berreiro da direita não faz sentido, sequer historicamente, como demonstrado aqui. A prática da corrupção é antiquíssima – se não imortal – e atinge como peste a todos, como as novas revelações fazem subir à tona, lentamente, mas fazem.

Se houver punição para os culpados, miúdos e graúdos – e não apenas o circo da exposição pública –, seremos um país de sorte.

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