O TEMPO

A fake 'excelência' de Minas

Na sexta feira, chegou a Betim, por volta das 13h, o comunicado de que uma barragem de mineradora havia caído em Brumadinho

Por Vittorio Medioli
Publicado em 27 de janeiro de 2019 | 04:30
 
 
Moises Silva

Na sexta feira, chegou a Betim, por volta das 13h, o comunicado de que uma barragem de mineradora havia caído em Brumadinho. O último aviso de queda, em dezembro de 2008, gerou uma inundação terrível às margens do rio Paraopeba. O acontecimento, ainda muito vivo na memória de todos, disparou o plano de evacuação da população ribeirinha na região da Colônia Santa Isabel. Meios foram colocados à disposição para remoção de pessoas e de seus pertences das mesmas casas que em 2008 foram atingidas. Muita apreensão e nervosismo, mas não passou disso. Para uma centena de famílias, custou apenas uma noite maldormida no abrigo improvisado do ginásio.

No mesmo dia, liguei para o prefeito de Brumadinho, Neném da Asa, que, atordoado, mas esperançoso, agradecia pela ligação e fazia um relato que minimizava a gravidade alardeada pelas redes de informação, como alguém que torce pelo menor impacto. “Tem vítimas por causa do refeitório da Vale, que estava lotado, em pleno almoço”, disse, completando sobre o número de atingidos: “Deve ficar abaixo de cem”.

Por volta das 15h30, saí de helicóptero de Betim rumo a Brumadinho para inspecionar o curso do rio. Não encontramos sinais de anormalidade até chegar à mina de Córrego do Feijão. Já de longe, surgia uma paisagem desoladora, de destruição e lama. Uma camada avermelhada de detritos cobria a bacia do córrego por onde desceram os rejeitos. Enxergava-se uma barragem represando um grande volume d’água, pendurada na encosta e resistindo à erosão provocada pelo desabamento de milhões de toneladas de lama que levaram parte de sua base.

Do local do desabamento até a confluência com o Paraopeba, por cerca de sete quilômetros, alguns pontos apresentavam, na margem sudeste, a perda total de mata ciliar numa altura de mais de 20 m. Do lado oposto, a lama adentrou a planície até deixar casas penduradas. Impossível imaginar o que estaria por baixo dessa invasão de rejeitos.

O leito do Paraopeba estava sendo invadido por esse material grosso e denso, que tinha perdido força e velocidade. Já estava represando a pouca água que descia da montanha. Em Brumadinho, o leito do rio se apresentava quase vazio pela interrupção da correnteza na barra do córrego de Feijão. Seguindo até Betim, nenhuma anormalidade.

Voltei ontem bem cedo de carro. Na central de enfrentamento da crise, recolhi novas e tristes notícias. A previsão de vítimas subia, já que mais de 300 funcionários da mineradora ainda não tinham sido localizados e ainda não se imaginava a extensão de perdas fora da mina, com as margens do córrego ocupando casas, sítios e pousadas, que, na época de férias, recebem muitos visitantes.

O problema com a represa d’água pendurada na encosta tinha sido superado durante a noite, provocando, sem consequências, seu esvaziamento. Uma dezena de helicópteros descia no campo de futebol ao lado da central, atendida por um caminhão-tanque, para reabastecer.

Na cidade, a comoção era forte. Um colega me disse: “Do meu time de futebol, perdi cinco amigos”. Cada um por lá conhecia pelo menos um entre os desaparecidos. Os habitantes de Brumadinho, como o prefeito, continuavam a torcer por um número mínimo de perdas, contrariando as informações dos gestores da crise. Por volta das 10h, é revelado o nome da primeira vítima, uma médica servidora no Hospital Regional de Betim desde 2011, que atendia alternadamente a Vale em Brumadinho. Jovem, bonita, excelente profissional, enteada de um estimado juiz.

Ao meio-dia de ontem, de volta à beira do rio, na Colônia Santa Isabel, de Betim, liberamos o estado de emergência e o retorno para as casas. As águas desciam mansamente, como se nada tivesse ocorrido. O volume de material lançado na queda daria para preencher mais de 25 vezes o estádio do Mineirão até a altura da cobertura das arquibancadas. Dezenas de anos foram necessários para acumular essa massa, e apenas alguns segundos para provocar um estrago colossal e sepultar centenas de vidas.

Agora, além da dor, ficam a revolta, as lágrimas dos enlutados, os questionamentos.

Depois de analisar de perto a cena do desastre e as imagens da área da mineração disponíveis na internet, aparecem várias dúvidas. Ninguém pensou em deixar a sede administrativa e todos os serviços de apoio, como o refeitório, fora do percurso que seria atingido por uma improvável, mas possível, queda da barragem? Mesmo estando tudo conferido, atestado e certificado por empresas do Brasil e da Alemanha, existia a remota possibilidade de uma fatalidade. E manter uma área mais alta fora do previsível percurso dos resíduos despejados pela queda da barragem em momento algum foi levado em consideração. Parece que não houve cuidado na preservação de vidas. A concentração dos trabalhadores se dava aos pés de uma enorme barragem, quando poderia ser ao lado.

Na comoção desse episódio, tem gente confundindo um licenciamento bem-feito, com todos os cuidados técnicos e de segurança, com um licenciamento demorado e complicado e que, à luz das leis atuais, já deixa tristes consequências.

O desastre é o espelho dos cuidados ambientalistas vigentes e futuros. Do sistema que embrulha uma dúzia de órgãos ineficientes que disputam taxas e cobranças, diretas e indiretas, para sobreviver, essencialmente voltadas para o próprio umbigo e longe do essencial e consistente. Cobram relatórios inúteis, repetitivos, onerosos, de empresas de parentes, que passam por inúmeros julgamentos “sine die” e “sine ratio”. E a Vale? Deixou em situação de risco evitável, já que as barragens feitas para resistir podem cair.

As regulamentações de licenciamento em Minas foram apresentadas como de “excelência” e “referência no planeta”. A realidade desmente a ideia de que esses atributos, acompanhados de complicações e altos custos, de demoras e burocracia medieval, geram garantia à vida e à preservação do meio ambiente. O que se faz necessário é assegurar qualidade, segurança e transparência, varrendo a velha e velhaca prática de gerar dificuldade para vender caras facilidades, como se deu em Mariana e, provavelmente, na mina de Córrego do Feijão.