O TEMPO

Apenas um retoque

Talvez a lembrança de colocar nas discussões os prefeitos das cidades atingidas pudesse ter deixado mais redondo o acordo

Por Vittorio Medioli
Publicado em 28 de fevereiro de 2021 | 03:00
 
 

No acordo da Vale, apesar de ter sido o maior de todos os tempos (por ter o valor equivalente ao de dez grandes fábricas de automóveis), nota-se, depois da abertura dos termos que o integram, uma metodologia que poderia ser mais produtiva. Esta corre o risco de seguir o destino das demais obrigações assumidas pela Vale e nunca cumpridas.  

Parabéns a todos que participaram. Talvez a lembrança de colocar nas discussões os prefeitos das cidades atingidas pudesse ter deixado mais redondo o acordo. Hoje, entretanto, o esquecimento é normal, num momento em que a representatividade por meio do voto popular, prevista no artigo 1º da Constituição, está fora da moda.  

Os pressupostos do acordo imaginam que a Vale seja uma organização séria e bem-intencionada quando se trata de pagar obrigações e executar contrapartidas e intervenções indenizatórias.  

Não é bem isso: o passado condena a mineradora, sem apelação. 

Por óbvias razões, seus diretores são medidos e compensados pelos lucros que geram, pelas economias que realizam e, finalmente, pela preservação da imagem da companhia.   

Nunca foi preso um diretor da Vale, apesar dos desastres incalculáveis, de centenas de mortes por omissão. Nem foram penalizados pelas condutas protelatórias e evasivas no cumprimento de obrigações de FAZER. 

O corpo jurídico poderoso colocou a Vale ao reparo de pagamento e de condenações.   

Os exemplos deixados pela Vale mostram que, de regra, se evadiu dos termos de acordos celebrados com entes públicos para reparações e contrapartidas. Sem FAZER, sem PAGAR, sem ser PUNIDA.    

A VLi, logística controlada pela Vale, assumiu o Termo 4.131/2013 com a ANTT, que a obrigava a FAZER obras em contrapartida que beneficiariam mais de 50 municípios, ao longo dos trechos de ferrovia administrados: “O valor devido pela Concessionária em função da degradação apresentada pela via férrea será convertido em investimentos, a serem efetuados pela FCA (VLi) na Malha Centro-Leste, conforme relação de projetos indicados pelo Ministério dos Transportes (ANEXO I), no montante de R$ 761.757.731,91, data-base de março de 2012, corrigidos anualmente pelo IPCA, acrescidos de 15% a título de vantajosidade para o setor público (dispositivo retificado no ‘DOU’ de 2.9.13)”. 

O valor atualizado representa alguns bilhões, mas a VLi conseguiu nada fazer. Contorceu-se de todas as formas, até o término do prazo contratual de oito anos, para evadir-se de FAZER uma só obra. No caso de Betim, único dos municípios que levou a VLi até a ANTT e conseguiu se habilitar, a habilidade do jurídico da empresa conseguiu que nada fosse realizado, absolutamente nada. Tem demanda judicializada por Betim sem movimentação até hoje.   

Pior ainda é o comportamento da Renova, fundação criada pela Vale em acordo com o Poder Judiciário para reparar os prejuízos da queda da barragem de Mariana. Os danos, avaliados em R$ 155 bilhões, se transformaram “de carruagem em abóbora” de R$ 5 bilhões iniciais, e deles as obras inexpressivas garantem a manutenção da devastação do rio Doce em seus 640 km de extensão. 

Alguém pensa que a obrigação da Vale de FAZER é para FAZER? O passado deu sua resposta. 

Mostra que, para uma empresa que gasta US$ 7 para extrair uma tonelada de minério, que vende por US$ 175, a consideração com obras é insignificante, nas prioridades e em seus lucros.  

A Vale não presta atenção a quanto gasta em obras que poderia realizar por muito menos de quanto um setor privado competitivo e probo consegue.  

Os parâmetros de gastos da VLi, controlada da Vale, na execução de transposições de linha férrea, chegam a ser muitas vezes maiores de quanto resultam numa concorrência pública, disputada por várias construtoras. Em Betim, onde a VLi orça R$ 35-40 milhões, com R$ 8-9 milhões, por meio de licitação pública, se resolve. Uma transposição que não podia aguardar, realizada pela prefeitura, resultou nessas proporções de economia de gastos. 

Tirados os parâmetros pelas práticas da Vale na construção de uma Unidade Básica Saúde (UBS) de alto padrão, um município probo e competente, atendendo a Lei 8.666, por meio de licitação, pode realizar até cinco unidades com o mesmo valor. E, se isso não for adotado, quem perde é população, que receberá um, e não cinco.  

Ainda na alocação dos recursos, sempre surge um questionamento: “Melhor investir na distribuição de peixes para matar a fome imediata ou investir em varas e aulas de pesca que garantam ad aeternum a emancipação econômica da pessoa e de seus descendentes?”. Digo que, quanto mais varas, ou infraestrutura permanente e investimento sustentável quanto multiplicadoras, mais benefícios serão alcançados. Observa-se que, no acordo, os valores garantidos à bacia do Paraopeba para a saúde pública, maior demanda da população, brigam por insuficiência com a realidade.   

Os valores de R$ 37,68 bilhões, quanto mais rapidamente forem aplicados, e quanto mais corretamente em “varas”, maiores serão os efeitos no tempo e no espaço, mudando o perfil da sociedade enriquecida de oportunidades.  

A Vale é reconhecida pela sua desconsideração histórica com a população dos municípios, dos Estados e até do país que lhe deu origem. Nascida em Itabira, a Vale tem a cidade como cartão-postal de abandono. Com obras malfeitas e uma cidade vampirizada.   

Pois é, o acordo dá à Vale a obrigação de FAZER, e ela sempre mostrou uma tecnologia requintada para NÃO FAZER (Renova e VLi). 

Sem alterar o acordo, mas apenas considerando o FAZER  da Vale, como FAZER O PAGAMENTO de obras e intervenções delegadas a entes públicos, sempre que sejam possíveis, e submetidos à Lei 8.666 e ao controle legal de TCE, TCU, MPF, MP e auditoria independente, presume-se que essas compensações, data venia, poderiam render muito mais e deixar uma região e um Estado mudado, preparado para um futuro bem melhor.