O TEMPO

Coerência das palavras

Difícil para o governo entender suas responsabilidades constitucionais, a urgência e o dever legal

Por Vittorio Medioli
Publicado em 27 de fevereiro de 2022 | 03:00
 
 

As chuvas deixaram em Minas Gerais um saldo de destruição e milhares de desabrigados, contudo o governador Romeu Zema assumiu suas responsabilidades só depois de se passarem cinco dias aquecidos por cobranças veementes da imprensa que lhe criticava a oferta de apenas R$ 1,2 milhão em cestas básicas.

Só depois de a questão se tornar moralmente insustentável e desgastante, anunciou R$ 600 milhões de ajudas aos atingidos, e, já passados 40 dias, não se viu a cor desses recursos (que deveriam ser) emergenciais.

Difícil para o governo entender suas responsabilidades constitucionais, a urgência e o dever legal. Veja-se no caso da indenização de R$ 37,6 bilhões da Vale para os municípios do rio Paraopeba: não chegou ainda nenhum recurso dos prometidos R$ 2,5 bilhões (apenas 6,7% do total da indenização), valor que, apesar de irrisório em relação ao resto de Minas, é até menor que os R$ 3,1 bilhões concedidos à futura concessionária do Rodoanel para gastar na obra que cobrará um pedágio bilionário.

Mesmo os acordos assinados, “promessas”, são atrasados, colocando entraves burocráticos, comitês, exigência de aprovação etc. Prazos que se dilatam e deixam os recursos como miragens de deserto. Estranho, pois esse governo prometia acabar com a burocracia e inventou a mais terrificante já vista em Minas para tratar dos interesses difusos. Autorizações, licenças, alvarás, intervenções singelas, que se esperava que melhorassem, até pioraram.

Agora, com as forças de segurança em greve, o imbróglio se repete. Promessas não cumpridas, mas com quem tem poder de fogo. Falta de diálogo, uma nítida derrota política, assim pode ser definido o ato de 35 mil policiais que desfilaram nas ruas de Belo Horizonte bradando um aumento prometido.

No caso da segurança pública trata-se até de um projeto de lei que o governo enviou para aprovação à Assembleia. Aprovado, vetou-o! É como você gerar uma obra e depois destruí-la. Inusual, até incompreensível. E, se existisse um motivo muito forte, deveria ser explicado.

Nem todos podem ser tratados da forma autoritária (e arbitrária) que esse governo se arroga facilmente, para atrasar cumprimento e se furtar a obrigações.

Costuma atribuir a culpa aos outros, terceirizar, nunca assumindo. A terceirizada da vez é a Assembleia, que não vota o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), algo que, na versão enviada, mira em especial nos objetivos de privatizar as estatais cujos lucros na realidade poderiam ser usados para amortização da própria dívida, que, bruta, alcança já R$ 154 bilhões.

Uma pessoa no mundo civilizado é respeitada pela lealdade à palavra e ainda mais ao que assina.

O governador Romeu Zema prometeu uma recomposição de 41% nos salários dos policiais em 2019. Deu 13% de imediato e, sem explicar motivos, anulou os demais aumentos, dois de 12%. A proposta de agora, de 10,06%, está atrelada à urgência da aprovação do RRF, que inclui a negação por dez anos de aumentos reais e progressões. Muitas coisas ao mesmo tempo e sobrepondo, complicando o que já era árduo num Estado que se apresenta inadimplente e falido.

Na realidade o momento apresenta a cumulação das demoras, o excesso de terceirização de responsabilidades, exatamente em ano crítico, como é sempre um ano eleitoral, de um governo “autossuficiente”, que nunca se importou em fortalecer suas relações políticas. Sem o dever normalmente cumprido na primeira parte do mandato, carregando ainda a cobrança de ações emergenciais que não saem do papel, as questões se confundem e se potencializam.

A decisão das forças de segurança dificilmente mudará, querem o que estava escrito, e Zema se encontrará condenado pelas suas promessas a cumpri-las.

O que se configura nesses episódios, mais do que uma incapacidade política frente à dificuldade, é a estreiteza de uma forma de governar sem a visão de conjunto, de seu potencial e das obrigações que a coisa pública impõe.

Se os romanos afirmavam que “dura lex, sed lex”, quer dizer, se a lei é dura, ainda bem que há uma lei, nesse caso a lei é posta em xeque pelo próprio governo. Os princípios fundamentais de democracia exigem o respeito de cima para baixo, condição que permite cobrar de baixo para cima.

A lei naturalmente superior se baseia indissoluvelmente na lealdade à palavra dada, com o compromisso assumido, com a coerência das ações. Quando isso é esquecido, é o caos. Pode ser o fim de um governo.