A fraqueza da democracia

Como marionete de empreiteiras

Quando o sujeito chega ao governo, salvo raríssimas exceções, esquece as palavras “honestidade e “probidade e foge delas como o diabo da cruz

Por Vittorio Medioli
Publicado em 07 de agosto de 2022 | 03:00
 
 

A fraqueza da democracia brasileira reside num pecado incrustado nas práticas de seus governantes que consistem em explorar a coisa pública e colocá-la submissa ao enriquecimento perverso de poucos. O que os gregos, inventores da democracia, imaginavam era a dedicação exclusiva ao bem comum dos governantes, mesmo que custasse perdas pessoais. A satisfação e a honra do mandato, uma espécie de sacerdócio, de missão honrosa para melhorar e defender a sociedade, eram as únicas recompensas. Hoje, o mais comum é o exercício de espoliação e proveito sem limites da coisa pública com evolução patrimonial pessoal escandalosa. 

O proveito indecente é tão comum como a luz do dia ou a escuridão da noite. Faz parte da paisagem. Os embates políticos são falsos, abestalhados, pseudoideológicos, patológicos. Quando o sujeito chega ao governo, salvo raríssimas exceções, esquece as palavras “honestidade” e “probidade” e foge delas como o diabo da cruz. Oportunismo dissimulado por ações demagógicas e maquiavélicas que, como diria Pietro Ubaldi, “praticam a antítese do Bem”. 

O “tumor” nacional é o dito “patrimonialismo”. Deriva da palavra “patrimônio” e pode ser definido como uma forma de poder em que as esferas pública e privada confundem-se e, muitas vezes, tornam-se quase indistintas. Uma descrição vulgar apresenta o governante se lambuzando como criança num bolo de chocolate que caiu em suas mãos. Esquece-se do sofrimento, da miséria, das desigualdades de seus governados. Transforma-se em dissimulado, impondo escolhas que dão ganhos injustos e ilegais a quem suga o Estado ou o partilha com ele. 

Em volta dessas práticas, o ambiente apodrece. Emergem figuras carimbadas pela corrupção dinástica.

Mensalão, petrolão, emendas ocultas, nepotismo, cabides de empregos, verbas direcionadas à compra de votos e apoios ou ao enriquecimento “milagroso” de alguns. Nesse clima orgiástico, tudo se transforma em permitido, ninguém tem autoridade moral, precisa chafurdar em práticas criminosas. 

Quando, depois, se abre a temporada de caça ao voto, é outra orgia de corrompimento de lideranças com verbas e promessas que não serão cumpridas, como nunca foram cumpridas. O objetivo é pessoal, não honrar a palavra. 

Para evitar um festival bilionário de bandalheiras em final de mandato, deixando a conta para a posteridade – paga com privações severas –, foi gerada a Lei de Responsabilidade Fiscal. Muitos foram contra essa grande conquista nacional votada em 1997. Colocou-se um freio ao aumento das dívidas públicas, aos “trens da alegria”, ao saque de erários no apagar das luzes. 

No caso de Minas Gerais, as práticas de irresponsabilidade, mesmo com a lei proibitiva, fizeram do nosso Estado um dos mais endividados do Brasil. Um exemplo de imoralidade. Sobrevive pelas liminares suspensivas de pagamentos concedidas pelo STF, com a colaboração tácita da União. Se a dívida não é honrada, também os repasses constitucionais aos municípios não são respeitados, e a não transparência oculta o arbítrio e a espoliação dos municípios. 

Isto é exatamente o patrimonialismo abjeto, sobrepondo o privado à governança pública.  

A Advocacia Geral do Estado, que deveria ser guardiã da legalidade dos atos de governo, é atrelada à lógica patrimonialista. Prova: um decreto-lei (autografado pelo governador como um cartão-postal, de que nem deve se lembrar), no início do governo dele, gerou inconstitucionalmente a primeira lei de leniência de nível estadual no Brasil. Um golpe de ousadia que beneficiou apenas a mais condenada empreiteira da operação Lava Jato. A Assembleia engoliu. A rainha do horror da Lava Jato – aquela que arrasou a Cemig com R$ 26 bilhões de prejuízos (reconhecidos pelo próprio governo atual!), dona das maiores concessões públicas em terras mineiras – assim se livrou da imputabilidade penal e das condenações, comprometendo-se a pagar em dez anos R$ 128 milhões. O acordo era tão escandaloso que ganhou sigilo por 20 anos. Ninguém pode ver, ninguém consegue explicar. 

A mesma Advocacia deu seu parecer, como provavelmente daria uma marionete de empreiteiras condenadas na Lava Jato, para que o absurdo edital do Rodoanel possa ser pregoado no dia 12 de agosto. Inicialmente, estava previsto para dezembro de 2021, ou seja, antes do ano eleitoral, para atender as proibições previstas em várias leis de responsabilidade e eleitorais que vedam a possibilidade de assumir compromissos financeiros no último ano de mandato e que gerem efeitos posteriores. Passaram, mesmo assim, para 28 de março de 2022, mas, frustrada mais uma vez a possibilidade, o pregão foi empurrado para o dia 12 de agosto, dentro da campanha eleitoral. Neste, o Estado não pode assumir compromisso fora de seu prazo de duração. Mas inúmeras e bilionárias obrigações passam a ser do Estado sem qualquer previsão orçamentária. 

O Estado não tem a anuência “imprescindível” dos municípios mais impactados pelo traçado que agrada às concessionárias. Estes reclamam justamente de um projeto antissocial, antiecológico, abusivo e ditatorial que impacta a vida de milhares de pessoas, destrói bairros inteiros e penaliza milhares de atividades econômicas, que cessarão ou serão fortemente prejudicadas. As cidades deverão se reinventar e perder anos de avanços. O Estado, insensível aos apelos das comunidades e dos prefeitos, como um monarca em delírio de poder, ameaçador, avança ilegalmente. 

O governo, irresponsavelmente e sem indicar a fonte de recursos para honrá-las, ainda sem quantificar os valores e sem estudos balizadores, assume no edital “todos os riscos e as indenizações”, até R$ 5 bilhões de lucros que porventura a concessionária não realize. Não existe no país e no mundo um despautério desse, uma ilegalidade tão gritante. 

Descarta, sem razões técnicas, o traçado rural proposto pelos municípios, que respeitaria as comunidades e a economia dos municípios. Deixa Betim, via de passagem da BR–381 e da BR–262, que hoje já são pesadelo, invadida. Apenas o transporte público terá que refazer e alongar dezenas de linhas em bairros transformados em labirintos e com seu trânsito impedido por uma via pedagiada e sem transposições. 

Os danos sociais e econômicos, como os lucros cessantes e a perda de arrecadação pública nas primeiras avaliações em Betim, podem ultrapassar R$ 30 bilhões. O Estado, se tem um estudo dessa demolição de Betim, não o apresenta, mas assume todos os riscos e custos de bilhões de transposições, viadutos e trincheiras necessárias, de reconstrução de redes de esgotos, de água, de energia de cabeamentos. Despesas bilionárias, não quantificadas, que serão cobradas nos anos vindouros. 

Pois estamos diante de um caso surreal, da vontade perversa, estúpida e patrimonialista, da submissão de vários órgãos do Estado ao interesse de concessionárias de rodovias (desmascaradas pela Lava Jato) que “doaram” o projeto, a modelagem e as cláusulas, produziram o edital, indicaram e emprestaram os agentes públicos que o Estado escalou. Ainda transferiram R$ 3 bilhões públicos como “ajuda”. E, pasmem, o Estado se compromete a pagar R$ 5 bilhões de lucros não auferidos. Os impactos sociais serão analisados apenas 24 meses depois do funcionamento da autopista pedagiada. Esse é o termo ditado e aceito pelas mesmas empresas escancaradas na Lava Jato. Um “estupro” da Lei de Responsabilidade Fiscal e do interesse público. 

A saber, diz o artigo 359-C do Código Penal: “É proibido promover, ordenar ou autorizar a assunção de obrigação, no último ano do mandato ou legislatura, cuja despesa não possa ser paga no mesmo exercício financeiro ou, caso reste parcela a ser paga no exercício seguinte, que não tenha contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa”. A pena: reclusão de um a quatro anos e perda de direitos políticos, incluindo neste período a impugnação de candidatura. Uma festa para os opositores de Romeu Zema.