O TEMPO

Como se conquista o castigo

Redação O Tempo

Por Vittorio Medioli
Publicado em 21 de dezembro de 2014 | 03:00
 
 

Chegou semana passada do interior, AF.

Estado lastimável e comovente. Há mais de dez dias não conseguia deitar, afetado por metástases ósseas. Os analgésicos “faixa preta” já resultam inúteis para aliviar a dor, noites insones, sem alimentação, pescoço reclinado no ombro, cadeira de rodas, funções prejudicadas. Origem, um tumor na próstata que fugiu de controle. Isso acontece muito com homens que se vangloriam: “Eu nunca fui ao médico”. Esses do “nunca” são comuns, temem passar por consultas e, quando chegam ao quebrar o “nunca”, já é tarde.

Os familiares de AF, depois de três dias de espera penosa, encontraram vaga de SUS no Mário Penna. Instituição de impagável serviço social e humanitário aqui em Belo Horizonte.

Neste fim de ano, as minhas empresas doaram ao Mário Penna, decorrentes de incentivo fiscal sobre IRPJ, R$ 234 mil. Considero isso um regalo que concedi a minha consciência. Ninguém impede que você recolha a parte cabível do IRPJ ou do IRPF a entidades como o Mário Penna. Não custa nada ser feliz.

O Mário Penna supre o atendimento oncológico de muita população carente. Em Minas Gerais, o déficit de atendimento especializado é imperdoável, e deveria pesar na consciência de políticos e administradores. Esses mensalões e petróleos têm seu pior aspecto e trazem consigo o castigo na medida em que sugam recursos públicos que aliviariam, se bem empregados, o sofrimento de milhões de abandonados.

O paciente AF encontrou nas aplicações intravenosas de morfina o descanso para as dores, os curativos aliviaram as feridas que se abriram nas costas. Sofreu lavagem intestinal, estancaram uma hemorragia e o soro aliviou a anemia em que se encontrava.

Outros sofredores estão na fila aguardando um leito. Em Minas, faltam 12 mil; na região metropolitana de Belo Horizonte, mais de 3.000 leitos hospitalares. Um cúmulo de sofrimento incalculável, para pacientes e familiares.

Decidi visitar AF. Chegando ao Mário Penna, não me contive, chorei, meu coração desmanchou. Pessoas humildes, pálidas, com olheiras negras, familiares estonteados. Olhares velados de tristeza. Crucificados a um destino muitas vezes sem saída. Lembrei os momentos mais terríveis da minha vida. Vários meses com um fígado imprestável, aguardando um órgão de alguém que não mais precisava dele. Tomei morfina, mas depois de momentos de alívio, entrava em profunda confusão. Nos pesadelos, ansiava suicidar-me, lançando-me de carro numa floresta. Pedia a Nossa Senhora que me concedesse ficar livre da vida. Mas depois de dez dias sem noção de tempo, voltei a me entender. Renasci. A ilusão material desapareceu, apegos e vaidade se diluíram. A vida adquiriu valor em si mesma, não por aquilo que se tem, mas por aquilo que somos.

Ser humano e solidário sem pensar em recompensa, já que a própria vida é o maior presente, a água é um milagre e o ar que entra nos pulmões, um presente inestimável.

Em O TEMPO de ontem encontrei a notícia que um conselheiro do Comam entrou com um pedido de vista, uma tergiversação hostil para alongar os mais de cinco anos de obstruções para reabertura do Hospital Hilton Rocha, destinado ao atendimento oncológico.

Seria mais uma solução. Usou uma prerrogativa tanto legal, como imoral, no tribunal ambiental do Comam, parquet de mil descalabros, como a verticalização do Belvedere, a conspiração contra a Pampulha e os mil votos a favor da especulação que transformou Belo Horizonte de Cidade Jardim em pombal de concreto.

Com a consciência nesse diapasão, atrasar a reabertura de um hospital oncológico faz sentido. Alongar ainda mais os cinco anos de espera do funcionamento de 220 leitos do antigo Hilton Rocha, encostado no paredão da serra do Curral, entra agora no currículo de Sergio Myssior. Ele é o proponente do pedido de vista que pretende implodir a reabertura do hospital. Para quê?

Na legislação ambiental mineira, tem um mundo de besteiras, moralmente injustificáveis em vista do interesse social e humano, e nelas também se encontra a possibilidade de exercer mal o poder.

Entende-se que pecado é deixar morrer quem poderia sobreviver com mais qualidade de vida.

O assunto já amplamente discutido passou pelo corredor polonês do “ambientalão mineiro” durante cinco anos. Sem mais argumentos impeditivos, vem agora a “legalidade imoral”. Mais de 107 mil pacientes que deixaram de ser atendidos durante o atraso formam o saldo de quem pagará contas na Justiça Divina.

Precisariam ler “Sabedoria Antiga”, de Annie Besant, para entender que se colocaram carmicamente no pior lugar que poderiam ter escolhido. Na pele, na alma, à sua volta, na sua família, atrai assim o sofrimento que continua acontecendo.