Vittorio Medioli

vittorio.medioli@otempo.com.br

O santo foi pecador

Publicado em: Dom, 07/04/19 - 04h30

O ódio é uma forma detestável. Contudo, é uma forma no “reino de Deus” que pode estar protegendo a pessoa de uma influência sob a qual ela ainda poderia sucumbir.

Diferente da insignificância, o desprezo pelo mentiroso, pelo hipócrita, por aquele que se mostra cruel para com o fraco, é uma emoção útil para quem a sente e também para aquele contra o qual se dirige, pois tende a preservar a pessoa de cair em pecados semelhantes.

O desprezo desencadeia ainda o sentimento de vergonha, e isso pode elevar o indivíduo acima do atoleiro em que está mergulhado. O “ódio construtivo” protege quem o nutre de cair em tentação, embora não seja a forma mais elevada da personalidade em construção do indivíduo.

Para a pessoa que apresenta tendência a determinado tipo de pecado, o ódio contra aqueles que o praticam protege-a de incorrer na mesma prática.

Chegará com o tempo a distinguir o pecado do pecador, e diminuirá a repulsa por este último, limitando seu ódio para o pecado.

Quando mais tarde alcançar a segurança provocada pela virtude, já não nutrirá mais ódio para o malfeitor nem para o mal, vendo neles apenas um estágio inferior do crescimento humano. Dessa forma se empenhará, liberto das atrações dos vícios, para ajudar, com meios adequados, os seus “irmãos” a superar o estágio de provações.

Não podemos negar que expressões como “indignação justa”, “nobre desprezo”, “ira controlada” são formas de reconhecer a utilidade dessas emoções de “ódio dissimulado” na medida em que deixam para trás situações piores. São lentos e contínuos passos de distanciamento do ponto de partida para alcançar a purificação das influências bestiais.

Em determinado estágio a intolerância para com o mal é muito melhor que a indiferença a ele e uma salvaguarda importante para a pessoa que a nutre. Embora nessa fase deseje evitar os pecados grosseiros, ainda não se libertou completamente deles. Dessa forma, a escolha de evitá-los se manifestará em ódio contra quem os pratica. Sem esse ódio ficaria mais vulnerável.

À medida que o ser humano vai evoluindo, se distancia das tentações e passa a manter destacada repulsa pelo pecado, mas aumenta a sua compaixão pelo pecador, e só quando se tornar um “santo”, se dará a não odiar o próprio pecado, reconhecendo nele uma situação que o indivíduo precisa ultrapassar.

Assim, quando sentimos repulsa por alguém, podemos estar certos de que temos em nós alguns traços que no odiado nos desagradam. Como os anticorpos fora do controle consciente enfrentam as bactérias invasoras, a personalidade se põe de guarda com reações que tendem a facilitar o enfrentamento. Quando um homem perfeitamente sóbrio sente repulsa acentuada pelo bêbado, é sinal de que ele ainda não ultrapassou a atração por uma bebida.

Afirma Annie Besant que “uma mulher superiormente pura não prova a menor repulsa por uma irmã decaída, cujo contato repugnaria as mulheres menos puras. Quando chegarmos à perfeição, haveremos de amar tanto o pecador como o santo, e talvez mais o pecador, porque o santo pode lutar sozinho, ao passo que o pecador sucumbirá se não receber alguma ajuda”.

Para a grande teosofista no livro “Um Estudo sobre a Consciência”, “sentirmo-nos diferentes dos outros constitui uma grande heresia, visto que a separatividade é uma força destrutiva e o todo divino evolui para a unidade. O sentimento de separação em definitivo é errado… o santo perfeito identifica-se tanto com os criminosos quanto com outros santos, pois os dois são igualmente filhos de Deus em diferentes estágios de evolução”.

Ela aconselha aqueles que conseguem sentir um pouco dessa verdade a praticá-la no dia a dia, ainda que imperfeitamente. Ao tratarem com os menos evoluídos, devem fazer o possível para nivelar o muro divisor e fecundar a compreensão dos irmãos.

Ao homem, há desejos de expandir suas relações de amor por considerar o bem-estar de sua comunidade da mesma forma que da sua própria família. Surge disso a grande virtude do espírito público verdadeiro, precursor infalível da prosperidade da comunidade e a nacional.

O servidor da humanidade – algo que o político tem a obrigação de ser – não pode negligenciar os seres humanos que estão junto à sua porta e que lhe são dados como seus primeiros irmãos. Mas tem que evitar privilegiar uns com o sofrimento de outros.

Nunca poderemos esquecer que o mal é a ausência do bem, do amor, nem esquecer que o santo já foi pecador.