O TEMPO

O sucesso de um italiano

Redação O Tempo

Por Vittorio Medioli
Publicado em 29 de julho de 2018 | 04:30
 
 

Na última semana, faleceu o maior dos italianos da última década.

A Itália chora sua morte. 

Uma personalidade que entrou pela esfera automotiva e, depois, em quase tudo em que mereceu uma admiração global. Presidente da mítica Ferrari, que neste domingo entrará na pista de luto, e ainda presidente do grupo FCA, Sergio Marchionne deixa a fama de um Midas. Seu toque transformou em ouro o que nada valia.

Numa empreitada mais do que árdua, teve êxito extraordinário, tirou o grupo Fiat de uma crise financeira assombrosa, esmagado por dívidas e pronto a passar para as mãos do primeiro ofertante estrangeiro.

A Fiat, nascida em Turim em 1899, passava em 2004 por quedas seguidas de vendas, com exceção apenas no Brasil, que tinha se tornado seu maior mercado e sustentáculo mundial. Naquele momento, Sergio Marchionne assumiu o comando da montadora em estado crítico. 

Um craque na consultoria empresarial, ele entrava com a tarefa de preparar a montadora para ser vendida a um magnata estrangeiro ou para um fundo de investimentos árabe.

A habilidade de Marchionne inverteu em pouco tempo a situação desesperadora, colocando a Fiat como compradora de marcas históricas americanas, lá onde a Mercedes, após uma década de tentativas, jogou a toalha. Chrysler, Dodge, Ram e Jeep foram arrematadas pelo corajoso Marchionne, que rapidamente conseguiu o milagre de reerguê-las, como já tinha conseguido com o Alfa Romeo e a Maserati.

O destaque mais portentoso foi o da marca Jeep, que, de 300 mil veículos vendidos no mundo, disparou para 1,4 milhão e colocou a FCA como a sexta maior fabricante mundial e a marca “esquecida” como uma das mais cobiçadas.

Marchionne sabia recolher um ferro-velho e, com paciência, deixá-lo um brinco. Dizem que ele enxergava o possível no impossível.

Ensinou às equipes de colaboradores que a qualidade em sua “totalidade” é a chave do sucesso, desde o menor e mais remoto detalhe. A filosofia da qualidade entrava em cena como uma obsessão.

A mesma fórmula que fez de Steve Jobs o empresário mais bem-sucedido dos últimos 50 anos, Marchionne adotava, com os mesmos princípios.

Até o modo de vestir despojado, sem qualquer vaidade e requinte, estava a mostrar que, mais importante que “ter” um guarda-roupa, era “ser” de verdade um líder, uma locomotiva, um gênio. Quem “é” não precisa ter grifes. A obra dele representa mais que mera aparência. 

Como disse Leonardo da Vinci: “A maior elegância está na simplicidade”; esta permite enxergar o homem que “é”, revelar a riqueza de uma personalidade. A roupa acaba, a personalidade se pereniza. 

Jobs teve à disposição 40 anos para levar a Apple ao topo das melhores marcas. Marchionne, apenas 14 anos à frente de uma claudicante fábrica de automóveis, que passava por seu pior momento de existência. 

Se a saúde o tivesse preservado, o céu seria o limite a que chegaria por sua coragem e competência.

Na Itália, ele tinha atingido o ápice da fama, conseguiu devolver o orgulho a um país que, como a Fiat, passava por uma depressão e perda de identidade. Respeitado como um “condottiere”, ele teve a audácia de ampliar o domínio em outras terras. Marchionne fez do grupo que comandava um grupo sem fronteiras, adotou o melhor de várias culturas, e seu staff contava com alemães, americanos, ingleses, japoneses, brasileiros e italianos. As marcas de automóveis se deslocaram de seus berços nacionais para ter, como afirma o axioma dos ocultistas, “seu centro em qualquer ponto (ou país) e a circunferência em nenhum”.

Imprevisível, despojado, admirado e até, em doses necessárias, “temido”, como deve ser um conquistador, ganhou a confiança de Obama no maior e mais exigente país do planeta. Ousou muito, já que tinha menos a perder do que a ganhar.

Imagino que muito se escreverá sobre ele, até porque a morte tende a “beatificar” e deixar ainda mais admirados os bem-sucedidos. 

Conheci-o de perto, em 2014, na inauguração de uma exposição de arte italiana na Casa Fiat de Cultura. Ele me chamou, conversamos por alguns minutos, durante os quais mostrou que me conhecia como fundador de jornais em Minas e como um bom parceiro de suas fábricas. Sabia mais da minha vida do que muitos outros que deveriam ter esse cuidado.

Familiarizados e à vontade, me convidou a segui-lo na solenidade. Entrando pela multidão, de repente ele se agachou, pálido e ofegante, pediu água, que ninguém conseguia. Saí entre os tantos e encontrei um copo abandonado pelo meio numa mesa, levei a ele, que o tomou; com algumas respirações profundas, se recuperou e se levantou.

Enquanto todos se espalharam à procura da água, sugeri que ele se retirasse. Nada disso: logo em seguida, subiu ao palanque e fez, em italiano, um discurso admirável.

Depois disso, nos últimos anos, eu o segui na imprensa, e ficou marcada em mim uma frase singela, que para bom entendedor explica muito de seu sucesso e os motivos para ele entrar na história:

“Lembro-me de meus primeiros 60 dias aqui, na Fiat. Visitava todas as fábricas e, quando voltava a Turim, nos fins de semana, ia a Mirafiori, sem ninguém, para ver os chuveiros, os vestiários, o refeitório e os banheiros. Eu mudei tudo: como posso exigir um produto de qualidade de meus operários e, ao mesmo tempo, oferecer uma fábrica degradada?”