MARCO

Clássico para celebrar

Aos 60 anos de carreira, Rosamaria Murtinho encena Nelson Rodrigues pela primeira vez; Dorotéia com Letícia Spiller e grande elenco entra em cartaz nos dias 28 e 29

Por Jessica Almeida
Publicado em 22 de julho de 2017 | 03:00
 
 
‘Dupla boa’, Rosamaria divide o palco com Leticia Spiller, que interpreta a personagem-título, Dorotéia Carol Beiriz/Divulgação

A atriz Rosamaria Murtinho, 81, estava em busca de um novo projeto, para celebrar seus 60 anos de carreira, quando seu filho mais velho, o produtor musical João Paulo Mendonça, sugeriu que ela conhecesse o trabalho do diretor Jorge Farjalla, com quem já tinha feito algumas parcerias. Foram os dois, então, assistir ao espetáculo “Paraíso Agora! Ou Prata Palomares”, que Farjalla dirigiu.
 
Deslumbrada pelo trabalho do goiano, não aguentou esperar o dia seguinte e ligou pra ele na mesma noite – madrugada, praticamente. “À 0h40, recebi um telefonema dela dizendo ‘me desconstrua, você é o único que pode fazer isso comigo’. É óbvio que aceitei e imediatamente pensei na farsa ‘Dorotéia’, do Nelson Rodrigues (1912-1980)”, conta Farjalla.
 
Assim fizeram e é esse espetáculo que trazem a Belo Horizonte no próximo fim de semana (dias 28 e 29). O primeiro passo foi se aprofundar no texto, escrito pelo dramaturgo em 1949, encerrando o ciclo que ele mesmo chamou de “teatro desagradável” (juntamente com “Álbum de Família” (1945), “Anjo Negro” (1946) e “Senhora dos Afogados (1947)”) e que o crítico Sábato Magaldi classificou como “peças míticas”. 
 
“São textos muito recheados de simbologia e signos”, explica o diretor. “Não são obras do universo da Zona Norte do Rio de Janeiro, da vida corriqueira, do carioquês. São completamente afastadas disso, têm outro norte e são muito ligadas à mitologia. O autor paulista Francisco Carneiro da Cunha associa essas obras ao Evangelho. Com elas, Nelson Rodrigues antecede o teatro do absurdo (cujos primeiros marcos aconteceram em 1949 e 1950)”.
 
Na história, acompanhamos Dorotéia, uma ex-prostituta que largou a profissão após a morte do filho e vai buscar abrigo na casa de suas primas: Dona Flávia, Maura e Carmelita, num espaço sem quartos onde há 20 anos não entram homens. Três viúvas puritanas e feias que não dormem para não sonhar e, portanto, condenadas à desumanização e à negação do corpo, dos sentimentos e da sexualidade. Dorotéia então busca a destruição da própria beleza para se igualar à feiura de suas primas.
 
Embora não seja a personagem-título, Dona Flávia, interpretada por Rosamaria, é a protagonista (as outras duas irmãs são as atrizes Alexia Dechamps e Jacqueline Farias). Nela, a atriz encontrou o desafio e a desconstrução que buscava aos 60 anos de carreira. “Eu queria fazer algo que ainda não tivesse feito, e eu nunca tinha feito Nelson Rodrigues. Minha personagem não sai de cena, é 1h23 de falas, são exatamente 297. É um papel difícil, mas uma desconstrução do que eu tenho feito”, afirma. “E o Farjalla me conquistou pelo toque pessoal que dá. Em Dorotéia, ele nos trouxe uma visão muito contemporânea de um texto escrito em 1949, mas que segue muito atual. Afinal, tem coisa mais atual do que hipocrisia, mentira, enganação?”, questiona.
 
Para interpretar Dorotéia, chegaram a pensar em Bruna Linzmeyer e Bárbara Paz, e até fizeram um teste com Fernanda Rodrigues, mas foram arrebatados por Leticia Spiller. “Quando batemos o olho nela no palco, pensamos que só ela poderia ser a Dorotéia. E além disso, nos demos muito bem, formamos uma dupla muito boazinha. Pelo menos é o que a crítica tem dito”, diverte-se. 
 
Novos elementos
 
A encenação de Jorge Farjalla acrescenta ao que foi proposto por Nelson Rodrigues. O texto original só tem personagens femininas, mas o diretor acrescentou um coro masculino, que chamou de “Homens Jarro”, devido à simbologia de o jarro ser o item que as prostitutas costumavam usar para fazer a higiene, após o ato sexual. São eles que executam a música do espetáculo ao vivo. 
 
Em toda apresentação, também, cem espectadores são convidados a assistir à peça de cima do palco. “Eu pensei toda a estrutura para teatro de arena, porque gosto de colocar o ator em risco nessa proximidade com o espectador. Então, quando começamos a viajar, fizemos essa adaptação, para que se mantivesse o contato”, explica Farjalla. 
 
Vivaz
 
Aos 81 anos e afetada por uma bronquite, Rosamaria não dá sinais de que quer diminuir o ritmo. Pelo contrário, diz que quer continuar montando autores que nunca fez, como Beckett e Shakespeare. “Meu próximo projeto é um Tchekhov, mas não posso dar muitos detalhes ainda. Também gostaria muito de fazer um monólogo e descobrir jovens autores brasileiros. Se der tempo (risos)”, diz.
 
Enquanto isso, Rosinha, como é chamada pelos amigos, aguarda o lançamento, ainda este ano, do documentário sobre ela e seu marido, o ator Mauro Mendonça, “O Cravo e a Rosa”, que Farjalla também dirigiu, e no ano que vem, interpretará uma “rainha meio biruta”, em suas próprias palavras, na novela das 19h, “Deus Salve o Rei”, com estreia prevista para janeiro de 2018.
 
Dorotéia
Dir. Jorge Farjalla; com Rosamaria Murtinho, Leticia Spiller e grande elenco
Sesc Palladium (av. Augusto de Lima, 420, centro, 3270-8100). Dias 28 (sexta) e 29 (sábado), às 21h. R$ 75 (inteira).