EM TRÂNSITO

Lenine retorna a Belo Horizonte trazendo um projeto questionador

Tragédia de Mariana trazido à baila por Lenine se conecta de forma visceral ao que faz voltar à capital mineira: “Em Trânsito

Por Patrícia Cassese
Publicado em 07 de julho de 2018 | 03:00
 
 
Rogério von Krüger/divulgação

Ao fim da entrevista, a pergunta de praxe: “Você acrescentaria algo que não foi perguntado?”. Sim, responde o cantor e compositor Lenine. “Queria reverberar a tragédia (ocorrida) em Mariana”. Enfático, o pernambucano repete por duas vezes a frase, em tom pausado: “Ninguém foi indenizado até agora”. E segue: “Aí, me pergunto: quantas barragens operam hoje só em Minas? E existe algum órgão regulador que nos dá a certeza de que estão em boas condições? Podemos confiar?”, questiona. “Ainda tem muita coisa para arrumar”, sentencia, na sequência, numa fala que amplia seu eco para além do rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015. 

O assunto trazido à baila por Lenine se conecta de forma visceral ao que faz voltar à capital mineira: “Em Trânsito”. O show que apresenta no próximo sábado (14), no Palácio das Artes, é um dos desdobramentos de um projeto gestado sob o signo da urgência. “Na verdade, fruto desse sentido de transitório que a sentença ‘Lenine em Trânsito’ provoca. Lógico que muito influenciado pelo momento que a gente vive, essa grande distopia que estamos vendo. Por outro lado, pela minha percepção da velocidade das mudanças, a ponto de não dar tempo de acompanhar tudo. Então, não existe o passado e muito menos o futuro. Existe o presente – e uma grande interrogação. E é sobre isso que ele (o projeto) corrobora, que ele transita”, explica. 

“Em Trânsito” sucede “Carbono”, disco de 2015, cuja turnê foi encerrada ano passado. Desta vez, cada produto derivado do pilar central – vinil, CD físico ou virtual e DVD – terá um diferencial. Contrariando sua prática de trabalho, agora Lenine começou por compor um feixe de canções “cruas”, destinadas já de pronto para um registro ao vivo, e não em estúdio. 
Antes, apresentou-as aos músicos que o acompanham (“minha família”) sem o auxílio de seu violão, ou seja, apenas com o suporte vocal. Daí veio o show “marco inaugural”, realizado no Rio e restrito a convidados. O registro dele foi para as plataformas online e, na sequência, rendeu o CD físico. Agora, vem o show de apresentação da nova lavra para públicos maiores. Mas, calma, ainda há um capítulo previsto: as músicas registradas ao vivo terão suas versões em estúdio, feitas em lotes.

O espetáculo que o belo-horizontino vai conferir tem início emblemático, com a faixa “Leve e Suave”, que também abre o disco. “Ela fala justamente do objetivo maior de todos nós, que é a leveza e a suavidade”. Mas que ninguém se engane com o tom. Logo aparece uma canção que aborda um tema em voga em tempos belicosos: a intolerância. Aliás, mais que um tema, esse também é o nome de uma composição. “Essa ‘senhora’ está com muito ibope! No universo das redes sociais, ela tem sido voraz. Atualmente, todos os avatares são movidos pela intolerância. O ser humano, por estar escondido atrás da tela ou do celular, é regido pela intolerância... A gente está perdendo o afeto nessa história”.

O show também abre espaço para canções mais “antigas”, como “Lá Vem a Cidade”. “Veja, na verdade, o show é como uma versão sem cortes do diretor (risos). Então, o repertório compreende um numero muito maior de músicas. E as mais antigas foram pinçadas pela adequação aos tempos de hoje. ‘Lá Vem a Cidade’ foi composta há quase 20 anos, mas soa como se tivesse sido feita ontem”, sublinha.

“meu Hálito”

Uma outra novidade inserida no projeto é que, dando sequência a uma estratégia que ele traçou para si, no palco, apenas em 50% do show Lenine assume seu violão. “Isso tem a ver com a procura de novos caminhos. Acho que existe, em qualquer profissão, a possibilidade de ter a sensação de repetição. E a minha vida toda burlei isso. Como faço? Eu procuro novos caminhos, até porque, sempre acho que o importante não é chegar a lugar algum, mas cruzar um caminho. Então, nesse sentido, ‘Em Trânsito’ traz essa questão, de descobrir outras maneiras (de fazer)”. 
Lenine concluiu que, no curso dos anos, o violão havia se tornado quase uma projeção do seu corpo. “As pessoas reconhecem as canções pelo tipo de violão que toco, mas a verdade é que, quando vou mostrá-las a quem me acompanha, aquele meu violão já induz a pessoa a, por exemplo, um tipo de baixo, de harmonia ou de percussão, ele já fica impregnado – é o que chamo de ‘meu hálito’”. De alguma maneira, então, limito a criação dos músicos. E, no caso das inéditas, quis afastar esse ‘meu hálito’”, explica.
Antes de mostrar à banda as novas canções sem violão, Lenine se propôs um desafio. “Procurei a canção mínima, a ponto de apresentá-las só com a voz. E prometi: caso ela não se mostrasse inteira, comporia outra. Isso me permitiu cantar com outra espécie de foco, foi quase um exorcismo. E, ao fim, o fato de os músicos terem entendido foi libertador”, completa.
O pensar coletivo, aliás, sempre foi palavra recorrente no vocabulário de Lenine. “E, nesse projeto, em particular, foi muito importante lançar os holofotes a essa coletividade, a essas pessoas maravilhosas que me acompanham e que por todos esses anos adaptaram tudo o que fiz para os estúdios. É a minha família. Ok, o Bruno (Giorgi, diretor musical e guitarras) é filho meu mesmo (risos), aí é família de sangue. Mas, na vida, a família que você escolhe como família é muito importante, e, nesse núcleo, o Pantico Rocha (bateria), por exemplo, já está comigo há quase 30 anos (risos), o Guila (baixo), o Jr. Toltstoi (guitarras)...”.

Conexão BH

Sobre retornar a BH, ele diz: “Ah, a minha relação com a cidade já é profunda. E essa coisa de você começar a respirar a cultura do lugar, é maravilhoso! O melhor da profissão... Você vai e volta, e volta mais uma vez, e já sabe o jeito de falar, os lugares onde vai se deliciar. Sabe que vai comer o pão na Bonomi, a pasta no Est! Est!! Est!!!...”, diverte-se.
Antes de se despedir, Lenine retoma o tom sério ao ser desafiado a falar sobre o Brasil atual. “A gente já descobriu que os três poderes vivem de migalhas do grande poder econômico. Nesse caso, a gente está falando de uns 40 nomes que só passamos a conhecer quando um delata, como no caso da carne podre. Esses são donos de tudo, mandam em tudo, e esse é o problema. Na verdade, entendo que o Brasil está em trânsito, e não ver um futuro possível que melhore as coisas a curto prazo é muito frustrante. Ver as mesmas caras, o mesmo cenário político numa época tão próxima às eleições, é muito frustrante, sabe?”.

No entanto, ele ressalva. “Vejo também que esse tipo de distopia é fundamental para rever tudo, para tentar acabar com a dissimulação. Porque isso é que mais me preocupa, a capacidade do ser humano de dizer uma coisa e fazer outra, descaradamente. Acho que isso está no cerne do problema. Mas, apesar de tudo, sou otimista. Acho que daqui a 20 anos vamos olhar e dizer: ‘Que loucura passamos’. Mas, veja, só daqui a 20 anos! E se e o plástico não tomar conta do mundo, se ainda houver comida. Porque a gente está superpovoando esse planeta e teimo em reafirmar que ele é apenas um útero: o que a gente faz aqui, aqui mesmo vai sofrer as consequências. Nada é mais burro que o imediatismo, o pensar: ‘O amanhã? O amanhã, f...”.

Lenine
Grande Teatro do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537). Dia 14 (sábado), às 21h. A partir de R$ 80 (plateia superior, primeiro lote)