Dia das crianças

Crianças engajadas

Pequenos fazem a diferença e colocam a mão na massa por um mundo mais consciente, solidário e humano

Por Alex Bessas
Publicado em 07 de outubro de 2017 | 03:00
 
 
Lara é educada consciente de um mundo diverso e desigual e tem na solidariedade um hábito Foto: Fred Magno

Não é de hoje que crianças demonstram sua capacidade de articulação e mobilização. Já em 1992, a canadense Severn Cullis Suzuzi, com então 12 anos, roubou a cena em uma conferência da ONU, quando discursou frente aos maiores líderes mundiais em defesa do meio ambiente, causa que lhe era cara desde os 9 anos. Quase 20 anos depois, a paquistanesa Malala Yousafzai ganhou o mundo por sua militância pela educação feminina, a que se dedica desde os 11 anos – e que, mais tarde, se desdobrou na luta pela educação pública gratuita. Aos 16, ela tornou-se a pessoa mais jovem a ser laureada por um Nobel da Paz. Mas não é preciso ir tão longe para se ter notícias de crianças que resolveram colocar a mão na massa para mudar a realidade em que vivem.

Na grande BH, Gabriela Souza, a Gabi, desde os 9 anos dedica-se solidariamente à luta por moradia. Neste ano, aos 14, sua história tornou-se conhecida após ter sido alvejada por uma bala de borracha, quando ajudava famílias durante a desapropriação da ocupação Manoel Aleixo, em Mário Campos, região metropolitana de Belo Horizonte.

Bernardo Dourado, 6, é outro exemplo. O Bê, como é chamado, tinha 3 anos quando quis dividir seus livros com o mundo. Já Julia Macedo, aos 9, começou uma campanha para conseguir uma cadeira de rodas para uma criança com paralisia infantil. Por sua vez, Ruanna Costa, 11, mobiliza o colégio em que estuda para que seus colegas façam doações de roupas e sapatos que, ainda novos, não lhes servem mais. Com uma repercussão em menor escala, mas não menos importante, Lara Freitas, 5, e seu irmão, Theo, 2, vão doar brinquedos nesta Semana da Criança. E, neste outubro, pela primeira vez, foram eles que separaram uma série deles de seus armários para entregar.

A psicopedagoga Ângela Mathylde Soares, aliás, indica que há ainda muitos aspectos comuns que estes pequenos notáveis dividem. “Certamente, há um ambiente familiar favorável, organizado, em que a criança tem essa estimulação”, afirma ela. Afinal, “as regras e limites são internalizados no ceio familiar”. A profissional salienta que “essa noção mais coletiva” é um “paradigma da educação do século XXI”, baseada fundamentalmente no tripé “resiliência, solidariedade e cooperação”.

Lição de Casa

Para Julia Macedo ajudar sempre foi um hábito reforçado pelos pais. Mas foi em 2013 que suas boas intenções ganharam a forma de um grandioso projeto, o “Lacre do Bem”. Tudo começou quando a menina visitou a creche Tia Dolores, que acolhe crianças com paralisia cerebral. A família foi ao local para realizar uma doação financeira à instituição. Se os adultos saíram com sensação de dever cumprido, a menina continuou inquieta.

Em uma viagem para São Paulo, o olhar atento da criança flagrou um outdoor em uma concessionária de pedágio. Ali, a informação que 140 garrafas pets cheias de lacres de latinhas de alumínio poderiam ser convertidas em uma cadeira de rodas. A partir de então, a menina se dedicaria a não mais descartar os lacres, a fim de conseguir a quantidade necessária.

“Muita gente havia passado por lá, muito gente passou depois e ninguém havia notado. Mas ela, uma criança, viu a oportunidade”, comenta orgulhosa sua mãe, Ivette Macedo, que hoje se dedica a gerir o “Lacre do Bem”. Sua observação, diga-se, encontra eco nas análises de Mônica Azevedo Meyer, bióloga e professora da Faculdade de Educação da UFMG. “Os pais devem estimular o olhar das crianças para o mundo, mas também devem estar abertos a receber estímulos delas”, diz. Afinal, já adultos, “perdemos a capacidade de olhar, de ter tempo para contemplar”, avalia.

O que era para se converter na doação de uma cadeira de rodas tornou-se algo maior. Passados quatro anos, o “Lacre do Bem” tornou-se uma grande rede de solidariedade, com pontos de coleta em toda cidade. Com isso, ganhou prestígio e recebeu, pelo menos, três prêmios, entre eles o Bom Exemplo Cidadania e o Gentileza Urbana.

Mas o número de que Julia se orgulha mesmo é o de lacres coletados, quantidade que beira impressionantes 10 bilhões. Na última terça (3), aliás, ela chegou à marca de 230 cadeiras doadas. “A meta era chegar a 200 até dezembro, dois meses antes já batemos a meta”, informa Ivette, com sorriso largo no rosto.

Mas aqui, bem, é preciso fazer uma digressão. Acontece que, para Ângela Mathylde, o valoroso projeto é herança de “um traço da cultura familiar” de Julia. O vestígio está na suas lembranças do Natal. “A gente reunia todas as crianças do prédio e ia embalar presentes para doação”, rememora ela, destacando que tudo era tudo feito em clima de festa.

Para a especialista, é muito importante que os pais estimulem seus rebentos a um pensamento coletivista. “Se, na educação, as crianças puderem extrair princípios, será positivo”, diz.

Defesa do meio ambiente desde criança Em 1992, durante a conferência da ONU realizada no Rio de Janeiro, acerca do Eco-92, a canadense Severn Cullis Suzuzi, à época com 12 anos, roubou a cena ao discursar como representante do grupo ambientalista “Evironmental Childern’s Organization”, que ela integrava desde os 9 anos ao lado de outras crianças. Impactantes, suas palavras viraram notícia em todo planeta. “Sou apenas uma criança e não tenho as soluções, mas quero que saibam que vocês também não têm”, disse ela, que ficou conhecida como “a menina que calou o mundo”.

Mais jovem Nobel da Paz Mais jovem ganhadora de um prêmio Nobel, a paquistanesa Malala Yousafzai tinha 11 anos quando a liderança local do Talibã emitiu, em 2008, ordem que as escolas interrompessem aulas dadas para meninas. Filha de um professor, a partir de então, a menina passou a escrever o blog “Diário de uma Estudante Paquistanesa”, em que dissertava sobre seu amor pelos estudos e o difícil contexto local. Sua militância pela educação feminina ganhou o mundo. Em 2011, ela foi alvejada na cabeça, depois de um ataque na região em que vivia. Dois anos depois, foi laureada com o Nobel da Paz. 

A luta por moradia Mesmo depois de conquistar sua casa, ao lado da mãe e dos irmãos, na ocupação Eliana Silva, na região do Barreiro, Gabriela Souza, 14, manteve-se empenhada na luta por moradia. Em um vídeo disponibilizado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), é possível ver como ela entoa palavras de ordem, repetidas por militantes adultos. Em maio deste ano, quando ajudava as famílias da ocupação Manoel Aleixo em meio a uma ação policial, ela foi baleada na boca. Para seu tratamento, o MLB lançou campanha de financiamento coletivo. Com 517 apoiadores, foram coletados R$ 28.110.

Educando para o coletivo

“Bibliotecário”. É assim que Bernardo Dourado, 6, se identifica. E sim, ele tem razão, já que, aos 4, abriu sua própria biblioteca. É sua mãe, a enfermeira e professora universitária na Faculdade de Enfermagem da UFMG e FIBH Daniela Mascarenhas quem lembra da empreitada do filho. “Desde que ele era bebê, Henrique (pai) e eu o estimulamos a leitura”, diz ela, lembrando que, entre outras coisas, o casal costumava ler para o menino, além de presenteá-lo com livros de banho, por exemplo. Visitas a livrarias também eram constantes. “Assim ele foi construindo seu pequeno acervo”, comenta.

Ainda com 3 anos, perto de seu quarto aniversário, o rebento confidenciou para a mãe o desejo de “fazer uma biblioteca no passeio do prédio”. “Ele sempre dizia que era o seu compromisso”, lembra ela. Foi quando Daniela, junto com o menino, foi ao Parque Aggeo Pio Sobrinho, no bairro Buritis. Foi ali que se instalou, em uma estante, a “Bibliotequinha do Bê”, inaugurada em 2015. Aliás, foi Bernardo quem “produziu” o lançamento da iniciativa. Para isso, chamou até um palhaço.

Daniela comenta que a bibliotequinha vive de doações e que, na última visita, ao ver que o acervo havia diminuído, Bê ficou chateado. “Ele sempre vai lá. Leva muito a sério e fica todo feliz quando outras crianças estão lendo no parque ou perto da estante”, diz. Detalhe: a avó do garoto é formada em biblioteconomia, embora não exerça a profissão. Foi assim que ele descobriu que existia um ofício com o qual, aos 3 anos, já se identificava. “Agora, ele diz que é bibliotecário”, diz a mãe.

Solidariedade como hábito

Assim como Julia Macedo, do “Lacre do Bem”, Bê foi educado desde cedo a compartilhar seus presentes. “Se ganhava um carrinho, dava um. Ganhou uma camisa? Então tinha que dar uma”, comenta Daniela.

A situação não é diferente na casa da contadora e blogueira Thaísa Freitas, mãe de Lara e Theo. O costume de doar brinquedos veio com o nascimento do caçula, hoje com 2 anos. “Na família, sempre foi comum que, quando um sapato ou roupa ficassem apertados, a gente passasse para um primo menor”, comenta. Acontece que, com a chegada do filho, o número de brinquedos aumentou muito. “Ele faz aniversário de 26 de dezembro... Juntava Natal com aniversário, o quarto ficava lotado”, diz ela. Então, Thaísa passou a realizar doações que, inicialmente, eram anuais. Depois, também no Dia das Crianças. Foi para essa ocasião que, neste ano, ela instruiu Lara e Theo a escolherem o que iriam dar.

Já a desenvolta Ruanna Costa tem particular predileção pela doação de roupas. Acontece que sua mãe, Giselle do Nascimento, é gestora de moda. A genitora conta que, sempre que saia para fazer doações, em geral em datas comemorativas, levava a filha junto. Com isso, “ela foi se mostrando solidária e prestativa”. A vontade de ajudar, aliás, reverberou em um “espírito de liderança aflorado”. “Ela sempre diz para os colegas de sala, sempre tenta influenciar eles positivamente”, menciona.

E é a própria Ruanna quem dá o recado. “Tem muita coisa aqui em casa que não tem utilidade nenhuma. Em vez de prender com a gente, podemos dar para uma pessoa que precisa mais”, diz, com docilidade, adicionando que “desde pequenininha gosto muito de fazer essas coisas”. Consciente da boa ação, a menina diz que deixa sua marca ajudando as pessoas. “É pelo que quero ser lembrada”, diz em um certo messianismo inocente.

As iniciativas destes pais, diga-se, são consideradas louváveis pela psicopedagoga Ângela Mathylde. “A maternagem e a paternagem são funções. Cabe aos pais mostrar e nomear o novo para seus filhos... Assim, devem indicar aqueles hábitos que são ou não saudáveis”, argumenta ela.

O mundo que se apresenta

Em se falando de apresentar o novo, Thaísa lembra de uma experiência particular que aflorou a sensibilidade de Lara. “Estava passando de carro no centro de BH, perto da rodoviária. De repente, ela começou a chorar”, recorda a mãe, informando ainda que, em princípio, ficou sem entender o que estava acontecendo. “Então, ela começou a perguntar muitas coisas, perguntar se aquelas pessoas que estavam na praça não tinham casa, se moravam na rua...”. 

Logo, o que era um simples passeio rotineiro sensibilizou também a mãe. “É uma coisa tão comum que a gente nem percebe”, diz. Para a professora da faculdade de educação da UFMG Mônica Meyer, aliás, deixar que o mundo se apresente é essencial para a educação dessas crianças. “Só assim elas vão descobrir a diversidade. E quem não conhece não respeita, não ama e não cuida”, reforça ela.

Mônica, por sinal, também defende que os pais permitam que seus rebentos tenham contato direto com a natureza, “em seu estado mais puro”. Para ela, estes passeios devem ser, acima de tudo, “apenas um passeio”, sem nenhuma obrigação de ensinar sobre ecologia ou preservação. Estas noções, afinal, se operam naturalmente.

Exemplo deste comportamento se vê em Ruanna. Ela mesma faz questão de contar que não se inibe: ao ver um adulto jogando papel de bala no chão, logo dá um puxão de orelha. “Eu explico para as pessoas que se a gente for poluindo, a gente não vai ter mais ele (o ecossistema)”. 

Se desde jovem Ruanna se mostra conectada com a causa ambiental, não por acaso ela se gaba do esmero que dedica às suas plantinhas. “Tenho várias que eu rego e cuido todos os dias!”, diz, entusiasmada. Delas só sabe a espécie de duas, “um coqueirinho e uma palmeira”. Para as outras, deu nomes próprios. “Tem a Raio de Luz, a Reino Verde, a Varinha de Fada... E muitas outras”, orgulha-se a menina.

Desapego

Doando brinquedos Em BH, alguns lugares aceitam doações de brinquedos. Durante o mês de outubro, aliás, os shoppings da capital aderem à iniciativa.

Fundação Dom Bosco Com unidades nos bairros Floresta e Madre Gertrudes, a entidade é especializada no atendimento de crianças especiais.

AURA A Casa de Apoio à crianças com câncer, com unidade no bairro Paraíso, recebe doações para os assistidos e também para venda para levantar renda.