Discussão

Debate urgente 

Caso Marielle Franco reacende discussão sobre entendimento a respeito dessa importante ferramenta de proteção à dignidade humana

Por Jessica Almeida
Publicado em 24 de março de 2018 | 03:00
 
 
3 Foto: Acir Galvão/Editoria de Arte

Há pouco mais de uma semana, no último dia 14, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL-RJ), 38, foi brutalmente assassinada – o motorista que conduzia o veículo em que ela estava, Anderson Pedro Gomes, 39, também foi morto. Quinta parlamentar mais votada da capital fluminense nas eleições municipais de 2016, ela lutava pelos direitos das mulheres, dos negros e dos periféricos, além de denunciar a violência policial, e sua morte provocou comoção nacional e internacional. Parte da repercussão, no entanto, se apresentou na forma de comentários nas redes sociais ou notícias de portais dando a entender que Marielle teria merecido morrer porque defendia os direitos humanos. Houve até quem comemorasse sua morte.

Entre os comentários da notícia do assassinato no portal UOL, um leitor identificado como JonJonis disse: “Defendia o direito dos manos. E agora?”. Outro usuário, identificado como Natan Ferreira, comentou: “E agr PSOL, ainda vão continuar defende as vitimas da sociedade? Pq vcs são contra a intervenção, são contra o porte de arma, mas e agr? Uma de vcs foi vitima, verdadeiramente vitima, da criminalidade! cabe ainda defende-los? (sic)”. Reações como estas demonstram o quanto a definição do que são os direitos humanos ainda é mal interpretada em nosso país.

Basicamente, direitos humanos têm a ver com o reconhecimento da dignidade humana, como pondera Thais Ribeiro, da Coordenação Geral de Educação em Direitos Humanos (CGEDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos. “A definição formal é um conjunto de direitos internacionalmente conhecidos como direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais. Num entendimento mais prático, são direitos individuais e coletivos, construídos em processo, como reflexo de conquistas de enfrentamento às violações e à intolerância. É a necessidade de igualdade e defesa da dignidade humana. Não é um conceito fixo, mas que está em constante construção, de acordo com as características específicas de cada sociedade”, afirma.

Direitos humanos são produtos da luta da humanidade em busca de sua emancipação, como complementa o cientista político e pesquisador de direitos humanos Moisés Augusto Gonçalves. “São fruto do sofrimento físico e mental de indivíduos e coletividades que se dedicaram e dedicam a lutar pela dignidade humana. Conquistas no campo dos direitos da mulher, do negro, da criança, do idoso, direito à saúde, à educação. Estamos falando nos humanos e seus direitos, portanto a coisa mais preciosa e mais importante que existe”, observa.

Sem viés

Essa definição em si já desconstrói o argumento de que direitos humanos são “defesa de bandidos”. “No primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é a grande referência, o grande marco nesse assunto, está escrito: ‘Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade’. Portanto, pensar que é defesa de apenas um grupo é uma concepção oposta ao que de fato se trata”, acrescenta Thais Ribeiro.

Essa visão é algo muito particular do Brasil, como observa a diretora executiva da ONG Conectas Direitos Humanos, Juana Kweitel. “Temos um sistema prisional e uma atuação da polícia extremamente truculentos e violadores dos direitos humanos. Muitos ativistas de fato têm denunciado essa situação. Para manter a democracia, precisamos que quando uma pessoa recebe uma pena, ela possa cumpri-la em condições dignas”, afirma. “Mas não se restringe a isso. Ao mesmo tempo que temos a polícia que mais mata no mundo, ela é também a que mais morre, por isso a garantia dos direitos humanos também é importante para os policiais”.

A criminalização da pobreza também seria um dos grandes responsáveis por esse entendimento, segundo o delegado e presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de Minas Gerais, Marco Antônio de Paula Assis. “É por isso que as pessoas que hoje lutam ainda contra esse contexto de opressores e oprimidos, por um mundo de mais igualdade social, acabam sofrendo essa pecha. É daí que surgem expressões como ‘direitos dos manos’, ‘bandido bom é bandido morto’, como se alguém tivesse carteira de identidade de bandido. Ninguém nasce bandido, quem transforma a pessoa em bandido, coloca esse rótulo, é o Estado”, afirma.

Ataque direto

Gonçalves concorda: “É estarrecedor ver que no discurso de combater o bandido, o endereço são só as favelas e vilas, sendo que estas são justamente o resultado de um processo de negação de direitos”, comenta. “É um debate equivocado posto na sociedade brasileira, porque quem defende direitos humanos é justamente quem defende a paz social, o reconhecimento de todos, o direito à liberdade religiosa, ao lazer, à educação, à saúde, a condições dignas de vida. Por isso o assassinato de Marielle não é um evento comum, é um homicídio político, uma vez que ela era justamente alguém que se erguia contra as injustiças”.

Aliás, houve também quem questionasse a ampla cobertura sobre a morte da vereadora, afirmando que milhares de pessoas morrem assassinadas no Brasil todos os anos e não recebem o mesmo tratamento. “É terrível pensar que nesse país, em 2017, tivemos quase 60 mil mortos. A morte de uma única pessoa é uma perda incalculável. Mas se for analisar quem são esses 60 mil, eles têm endereço, idade, etnia e identidade definidos. Mais de 70% desses assassinatos são de jovens, negros, pobres, de periferia. A diferença de Marielle é que ela foi justamente uma voz que se ergueu contra o extermínio da juventude negra e pobre”, explica.

Defensores

62 É o número, segundo a Anistia Internacional, de ativistas dos direitos humanos assassinados no Brasil entre janeiro e setembro de 2017. Somos o país que mais mata essas pessoas no mundo.
 
Dados
246 É o número de recomendações feitas pela ONU ao Brasil. O documento abordava temas como direitos de povos indígenas, averiguação de crimes policiais, torturas em prisões e proteção a defensores dos direitos humanos.
 

É preciso atacar as causas

Em momentos como o que vivemos, que sucedem fases de conquistas de direitos e existe uma espécie de reação, é preciso estarmos atentos em relação aos retrocessos, como ressalta a presidenta do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Fabiana Galera Severo. “O Estado democrático de Direito pressupõe um ambiente de segurança jurídica e política para que o próprio povo não perca o poder. Qualquer ameaça à democracia pode nos levar a contextos que já tivemos de ditaduras, militares ou não”, afirma. 

Ela acrescenta que colocar em xeque a validade dos direitos historicamente conquistados pelo povo pode levar a retrocessos graves que necessariamente vão atingir a todos. “Num primeiro momento, quando acontecem essas rupturas democráticas, naturalmente os primeiros grupos sociais atingidos vão ser os mais vulneráveis, mais discriminados. Entre eles, a população pobre, negra, LGBT, os excluídos em geral. Acontece que invariavelmente a perda de direitos atinge todas as pessoas, até mesmo quem sustenta um discurso de que não seria válido defender direitos humanos”, diz.

Tanto o mau entendimento acerca dos direitos humanos quanto a própria questão da segurança pública no Brasil perpassam mudanças estruturais, como defendem os especialistas ouvidos pela reportagem. “Todo mundo concorda que a violência é um problema que precisa ser enfrentado. A divergência que talvez exista é com relação à estratégia de enfrentamento. Será que a melhor forma é investir na violência institucional, numa postura que vai levar ao encarceramento, à lotação das penitenciárias, ou a melhor forma é atacar a causa da desigualdade social, no sentido de investir nas políticas de emprego, renda, educação e inclusão social?”, questiona Fabiana.

O caminho, para o cientista político e pesquisador dos direitos humanos Moisés Augusto Gonçalves, perpassa três etapas. “A primeira é buscar compreensão de que quando falamos de direitos humanos estamos falando do coração da democracia e da dignidade humana, que essa questão não seja distorcida. A segunda questão é entender que segurança e direitos humanos não são antagônicos, não há a primeira sem os últimos. E, terceiro, é preciso entender que o fenômeno da criminalidade e da violência tem causas mais profundas e que elas precisam ser atacadas”, pondera.

Curto, médio e longo prazo

Ele não ignora que medidas imediatas precisam ser tomadas, mas destaca a importância de ações que ataquem as causas do problema. “O resultado para esse tipo de ação é de médio e longo prazo e elas não dão votos”, diz.

Dentro dessas ações, o cientista político destaca três que seriam fundamentais. “A primeira seria uma reformulação completa, séria e profunda do sistema carcerário, uma vez que no modelo atual ele é uma fábrica de criminosos. A segunda é pensar seriamente que o problema da desigualdade social é uma causa que tá nas raízes dessa questão. E, por fim, é preciso mudar a política em relação à guerra às drogas, que faliu no mundo inteiro. Trouxe mortes de milhares de inocentes, é só olhar para a Colômbia, o México, as Filipinas. Como diz Mia Couto, parece que há quem tenha medo que o medo acabe. Só quem ganha com essas políticas equivocadas é a indústria das armas”, afirma.

No entanto, ele conclui com uma mensagem de esperança: “A lição que o Brasil nos traz é que quando tentam silenciar de forma violenta os porta-vozes dos direitos da dignidade humana, o tiro sai pela culatra. Porque não se trata de uma pessoa, é uma causa, uma ideia, um sonho. E aí você multiplica os lutadores por essa causa quando tenta silenciá-la. Isso é possível, se a gente tiver consciência e se quiser”.

Documento da ONU é balizador

 

O marco na história dos direitos humanos é a criação, em 1948 – ou seja, há 70 anos –, na Organização das Nações Unidas (ONU), da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), com as condutas que deveriam ser comuns a todos os povos do mundo. Traduzido em mais de 500 idiomas, esse documento serviu de base para as constituições de vários países, inclusive a do Brasil, de 1988, que por esse motivo ficou conhecida como Constituição Cidadã.

“Esse primeiro esforço significou uma reação à barbárie, à guerra, ao horror que estava muito vivo naquela época, afinal foi logo após o fim da Segunda Guerra Mundial”, observa Gustavo Barreto, um dos representantes da ONU no Brasil. 

Quase 20 anos depois, em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, esses sim, diretrizes que precisam ser cumpridas pelos países, foram assinados vários países, inclusive o Brasil. “Todos eles são obrigados a seguir essas convenções que, digamos, disciplinam esse documentam que é a DUDH”, acrescenta.

Caso Marielle gerou comoção internacional

 

Papa Francisco Luyara Santos, filha da parlamentar, escreveu um email para o Papa, – por meio de um intermediário na Argentina, o jornalista Lucas Schaerer – pedindo orações ao Pontífice. “São muitos discursos de ódio e precisamos de amor”, disse. Em solidariedade, o Papa Francisco telefonou para a família de Marielle para comunicar seu afeto e prestar condolências à família pelo brutal assassinato.

Imprensa internacional “Washington Post”, “The New York Times”, “The Guardian” e “El Comercio” foram alguns dos veículos da imprensa global que repercutiram o caso. Na última terça-feira (20), o diário “Washington Post” estampou a foto de Marielle Franco na capa e classificou a ativista como “símbolo”.

Naomi Campbell A top model se manifestou na semana passada em sua conta no Instagram: “Me entristece ouvir que Marielle Franco, que dedicou sua vida à luta contra o preconceito, o racismo e a violência policial no Rio de Janeiro, foi assassinada na noite de ontem. Vamos, Brasil, acorda!”, escreveu a modelo – que tem quase cinco milhões de seguidores na rede.

Katy Perry Em show na noite do último domingo (18) no Rio de Janeiro, no encerramento da “Witness: The Tour”, a cantora dedicou uma música a Marielle e convidou a filha e a irmã da vereadora para o palco.

RuPaul Ícone LGBT compartilhou uma matéria do site “The Intercept” que leva o título: “O assassinato da ativista dos direitos humanos Marielle Franco foi uma grande perda para o Brasil e para o mundo”.

Lauren Jauregui Ex-Fifth Harmony, a cantora manifestou condolências por sua conta no Twitter e, inclusive, compartilhou a postagem da página Human Rights Watch – responsável por monitorar violações de cláusulas da declaração pelo mundo.

Viola Davis Ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2016, a atriz homenageou a ativista carioca no Twitter. “Acabo de saber sobre esta mulher corajosa, #MarielleFranco, que lutou pelos direitos dos pobres nas favelas. Eu apoio e luto com vocês, Brasil! Viva Marielle e Anderson!”.

Janelle Monáe Após a fala de Viola Davis, a cantora e atriz compartilhou notícias sobre Marielle em sua conta no Twitter e postou: “Diga o nome dela para sempre. #MarielleFranco”.

Evan Rachel Wood A atriz, a Dolores da série “Westworld”, também compartilhou uma notícia sobre a vereadora no Twitter e comentou: “Marielle Franco foi assassinada porque lutava pelos direitos humanos”.