Reportagem

Assim, normal

'Normcore' é a palavra da vez; entenda seu significado e como isso pode influenciar seu modo não só de se vestir, mas de se colocar no mundo

Por Jessica Almeida
Publicado em 01 de agosto de 2014 | 13:47
 
 
Ícones. Os atores camaleões James Franco e Wagner Moura são mais normcore que Steve Jobs ]JUST JARED/DIVULGAçãO

Pessoas cujos ícones de estilo são os personagens da sitcom norte-americana “Seinfeld”, o personagem de desenho animado Doug Funnie ou um pão de forma; que ouvem U2, compram carros sedan, usam calças cáqui, gola rulê e sandália com meia. Essas seriam, de acordo com um divertido teste do site de entretenimento “BuzzFeed”, as características de um adepto do “normcore”. A ideia do teste é fazer graça levando ao extremo o conceito bem mais elaborado que vem se delineando nos últimos meses.
 
O termo “normcore”, assim como “selfie”, no ano passado, tem se espalhado rapidamente pela internet – uma busca no Google hoje gera cerca de 1 milhão de resultados – e pela imprensa, indicando o movimento daqueles que entendem que são 1 em 7 bilhões e se deram conta de que buscar a individualidade numa sociedade globalizada e mediada pela internet é simplesmente inviável. Para se colocarem de uma forma mais aberta no mundo, passível de interação com qualquer um, se vestiriam com moletons, jeans mal ajustados, tênis de corrida, sandálias de velcro ou qualquer coisa que torne seus looks neutros.
 
Abordado por esse viés fashion pela “New York Magazine” – primeira a citar o termo e uma das responsáveis pela disseminação do conceito –, normcore nada tem a ver com roupas, mas, sim, com atitude. A concepção seria a de que o indivíduo se adapta com naturalidade à situação em que se encontra, integrando-se com maior facilidade a qualquer ambiente, seja ele qual for. Normcore representaria a fluidez de identidade que está emergindo na cultura jovem, fluidez esta que pode ser resumida em empatia e conectividade. E, para isso, nada melhor que um vestuário mais versátil.
 
“O jovem normcore é um camaleão urbano, que pode ir a um sertanejo universitário na terça, a um funk na quinta e a uma festa de rock no fim de semana. É um comportamento mais situacional e adaptável”, esclarece André Oliveira, diretor de tendências da Box 1824, escritório paulistano de pesquisa em inovação, consumo e cultura que, em parceria com o grupo nova-iorquino de previsão de tendências K-Hole, elaborou o relatório “Youth Mode: Um Estudo Sobre Liberdade”, que criou o conceito de normcore. Nessa perspectiva, os atores James Franco e Wagner Moura, que transitam por universos diferentes, são considerados ícones da tendência.
 
Conceitos misturados
 
Como tem sido difundida apenas como uma maneira de neutralizar o estilo, a postura normcore é frequentemente associada a figuras como a do empresário e co-fundador da Apple Steve Jobs (1955- 2011), que embora tivesse dinheiro e status preferia se vestir de forma a não se destacar na multidão. 
 
Por conta disso, a ascensão dessa postura tem sido vinculada à propalada decadência de outro grupo: o dos hipsters. Sua busca incessante pela originalidade, amparada num estilo cada vez mais peculiar, os teria feito perder a alegria de pertencimento que vem do fato de fazerem parte de um grupo. Estariam cansados de (tentar) ser diferentes e, por isso, se tornando normcore. 
A trendhunter e fundadora do laboratório de tendências e comunicação digital Über, Suzana Cohen, porém, acredita que talvez a aparência consagrada como hipster – barbas frondosas, óculos excêntricos e camisas xadrez – esteja mesmo em decadência, assim como a palavra em si está desgastada, mas, para ela, esse estilo de vida segue em alta. “Estive em Londres, Barcelona e Paris recentemente e observei a filosofia hipster ainda muito forte. Os valores mais sustentáveis desse estilo, como uso das bicicletas, as feiras gastronômicas, a cultura do ‘do it yourself’ e os pequenos negócios próprios continuam em alta. Pra mim, o que está em baixa é seguir a tendência de uma forma rasa”, argumenta.
 
Mas qual seria então a relação do hipster com o normcore? A resposta para essa intrincada questão seria um erro conceitual. No estudo do K-Hole e da Box 1824, o contexto em que vivemos – que engloba os hipsters e outros grupos que prezam pela diferenciação – é chamado de “Mass Indie”. “É um momento após a apropriação massiva do movimento indie dos anos 1980 pelo mercado, em que todo mundo busca ser especial pela diferença”, explica André Oliveira. “É uma noção que provoca isolamento porque o pertencimento é muito restrito às tribos, seja clubber, ou hippie, ou qualquer outra”, acrescenta Nina Grando, pesquisadora de tendências do escritório. 
O que vem sendo chamado de normcore, graças à matéria da “New York Magazine”, seria um estágio intermediário que o estudo chama de “Acting Basic”. É a busca pela neutralidade como forma de evasão à diferença e incorporação da uniformidade, o que tem sido observado em Nova York. “Tanto o normcore quanto o acting basic são formas de evitar a diferença: numa forma isso é feito abraçando a adaptabilidade. Na outra, a reação é se evadir usando roupas mais simples, confortáveis”, André esclarece. 
 
Cautela se faz necessária
 
Diante desse tipo de apontamento sobre as transformações na sociedade, ainda que prevejam situações positivas, é preciso ter certa cautela, segundo a professora e pesquisadora da Escola de Design da UEMG, Angélica Adverse. “Devemos tentar entender que os estudos antropológicos realizados por empresas de prospecção de tendências sempre desencadeiam algumas mudanças em nosso cotidiano. E alguns desses estudos não apresentam dados culturais muito precisos, que possam nos fazer compreender melhor as tendências apontadas”, diz. “Por isso, às vezes, tenho severas críticas quanto ao trabalho da Box 1824, porque suas pesquisas enfatizam mais um ideário midiático do jovem de classe média-alta”.
 
A professora ressalta a importância das pesquisas etnográficas e antropológicas para a leitura de um determinado comportamento. “Contudo, quando esses estudos são expostos em uma extensa rede de informação como a internet, podem gerar muita ambiguidade. O que acontece a partir da divulgação desses dados é uma espécie de ‘jogo de espelhos’ no qual não se sabe se o estudo é realmente uma leitura do real ou se o real se configura a partir dele”, adverte.
 
Para ela, é necessário adotar uma postura mais crítica. “Reforço a importância de observarmos criticamente tais movimentos e nos perguntarmos se eles de fato são uma leitura do espaço social (seja de um movimento de estilo que acaba provocando inovações sociais) ou se essa informação veiculada pragmaticamente pela mídia estimula a sua multiplicação gerando um mimetismo social (uma cópia e replicação de suas vertentes se transformando num ‘modismo’)".
 
Mercado se apropria do termo
 
Não importa que a própria Fiona Duncan, autora do artigo da “New York Magazine” que espalhou o normcore pelo mundo, tenha se manifestado publicamente assumindo as associações equivocadas de seu texto – ela disse que o original era mais sobre comportamento do que sobre moda, como o estudo que originou o conceito, mas as várias edições por qual passou o transformaram no contrário –, o termo já tinha ganhado vida própria. E mais: foi absorvido pelo mercado da moda.
 
“O conceito original da camuflagem, de se vestir de acordo com a norma de cada ambiente, se transformou”, explica a editora de moda e professora da Escola São Paulo de economia criativa, Vivian Whiteman. “A noção que tem se espalhado seria uma tendência fashion que prima pelo uso de roupas que são comuns. Nesse sentido, o normcore talvez seja uma resposta ao culto do exclusivo, mas me soa um pouco ingênuo, porque as grifes precisam continuar vendendo”.
Por isso, parece um absurdo pensar que, poucos dias depois do primeiro artigo ser publicado, a revista norte-americana “GQ” tenha usado o termo para identificar uma tendência antiluxo detectada na alta moda. E que marcas como Miu Miu, da Prada, Patrik Ervell e Louis Vuitton estejam lançando coleções com elementos do normcore.
 
O stylist Juliano Sá diz que é natural essa apropriação pelo mercado fashion, o que deve acontecer não só por parte das marcas de luxo, mas por todos os nichos. “Eu acho muito legal essa proposta do ordinário. As pessoas se vestirem de maneira mais casual é uma coisa interessante até pra dar uma limpada no visual e, com isso, frear o consumo exacerbado. Mas precisamos tomar cuidado pra que isso não se torne apenas mais um rótulo de venda”, adverte.
 
Há também quem não esteja comprando esse discurso, como indica um post no site da revista “Elle”, que diz que o normcore não é algo novo e não passa de uma piada. O texto argumenta que vestir-se como um pai desajeitado é o cerne da cultura hipster, cuja referência eram os anos 1970 e o início da década de 1980. Como os anos 1990 começam a ficar a uma distância maior, eles seriam a nova fonte de inspiração.
 
Nem um nem outro
 
Normcore não é nem tendência fashion nem piada, de acordo com o consultor de comunicação e cultura Gustavo Mini, em artigo publicado na revista “Void”. “Normcore é um bom termo para resumir como a dinâmica de propagação de tendências pode estar mudando”, diz. Segundo ele, até pouco tempo atrás, esse esquema se assemelhava à imagem de um líquido viscoso sendo derramado no topo de uma pirâmide e escorrendo lentamente paredes abaixo até chegar à base, que seria a população em massa. No topo, estariam as figuras que funcionam como antenas da sociedade, pessoas que captavam antes dos outros os novos modos de ser e agir. “Sob a lente do normcore, essa demora, representada aqui na imagem do líquido viscoso descendo a pirâmide, não faz mais sentido. Hoje, é mais realista pensar que as ondas culturais se disseminam como uma bala de paintball explodindo dentro da pirâmide, espalhando tinta de maneira não uniforme para todos os lados, manchando diferentes segmentos sociais”, argumenta.
 
Essa nova velocidade e dinâmica de propagação dos bens de consumo, na ótica de Mini, pode criar um problema mercadológico, já que a lógica do capitalismo desde os anos 1950 vem absorvendo os movimentos culturais alternativos e devolvendo-os digeridos, embalados para o consumo seguro de um público mais amplo – ou seja, seria a força que faz o líquido escorrer do topo para a base da pirâmide.
 
A professora e pesquisadora da Escola de Design da UEMG, Angélica Adverse, chama a atenção para o fato de que talvez essa não tenha sido a primeira vez que o conceito normcore foi apresentado. “Essa abordagem já havia sido apresentada a partir do conceito de File Sharing, feita pelo estúdio Future Concept Lab, do sociólogo Francesco Morace, há alguns anos. Dizia que, para o consumidor contemporâneo, se reconhecer nas imagens publicitárias é essencial. A democratização da informação, o compartilhamento de imagens alimenta o afeto de empatia. Por isso, as paixões e as vocações do homem comum passam a ser representadas nas imagens da publicidade e na moda”, afirma.
 
A professora ressalta que “empatia” seria a palavra de ordem dessas duas leituras que visam apontar o quanto é importante para a contemporaneidade os processos de conexão e inclusividade. “Lembremos as campanhas da Dove pela ‘real beleza’ e a campanha da Benetton sobre os ‘desempregados do ano’. Ambas discutem emoções e situações da vida do indivíduo comum e buscam, por meio de uma conexão com o consumidor, abordar o indivíduo da comunidade”, diz.
 
Gustavo Mini, em seu artigo para a “Void”, amplia ainda mais essa análise. “Talvez a ideia de normcore como uma hiperadaptabilidade em busca de conexão humana seja um cansaço natural de 60 anos de busca por individualidade através de códigos comerciais externos. (...) Quem se importa se você é Mac ou PC quando ambos são montados na China pelas mesmas fábricas com condições de trabalho questionáveis?”, diz. “Somos semelhantes nas nossas singularidades e não apesar delas. Do ponto de vista do normcore, poderia se dizer: de perto, ninguém é normal e mais de perto ainda ninguém é anormal”, conclui.