Reportagem

Memórias afetivas 

Estadual Central: Livro faz resgate histórico da escola e ex-alunos relembram os bons tempos

Por João Paulo Costa
Publicado em 20 de setembro de 2014 | 03:00
 
 

 

Primeiro ato: O ano é 1956. O prédio ainda cheirava a tinta. No pátio, alunos e professores se reuniam admirados com as novas instalações do colégio, que tiveram como projetista ninguém menos que o arquiteto Oscar Niemeyer (1907- 2012). Os alunos aguardavam a sirene da escola tocar para que eles pudessem entrar para as salas. Todos ansiosos para subir a rampa e conhecer a nova escola. E o som do sinal não vinha. Aliás, até chegou, mas veio pigarreando, fraquinho, inaudível. Sobrou para os funcionários, que tiveram que guiar os alunos aos gritos até as salas. Tempos depois, todos souberam nos corredores da escola que foi uma caixa de fósforos arremessada por Fernando Guerra (hoje médico e naquela altura um exímio jogador de basquete) que engasgou a sirene.
 
Segundo ato: Com as instalações novas, chegou a hora de o diretor-geral convidar todos os alunos para um congraçamento no auditório. À mesa, tomaram assento os professores. Na hora em que ele foi se sentar junto a eles, a cadeira lhe escapou e, para o delírio dos presentes, a gravidade falou mais alto. O que se viu foi um par de pernas magras voando pelo ar, em meio a intermináveis gargalhadas lembradas até hoje pelos ex-alunos.
 
Terceiro ato: Humberto já era conhecido por suas peraltices na escola. Inquieto, os professores sempre o colocavam no meio da sala para que não o perdessem de vista. Era dia de prova. Lá da frente, a professora observava aquele guri movimentando-se em atitude suspeita, com o lápis em uma das mãos e olhando para a palma da outra, como se tentasse colar. Incomodada, ela chegou até o aluno e o surpreendeu: “Abra a mão!” “Não abro!”. Nervosa e após muita insistência, conseguiu obrigá-lo a abrir e, para o espanto de todos, havia uma única palavra escrita: “curiosa!”
 
Estes fragmentos poderiam fazer parte de um burlesco texto teatral, mas são casos que se juntam a outras tantas histórias do Colégio Estadual Governador Milton Campos, mais conhecido como Estadual Central, que completou 160 anos em março deste ano. Na última semana, o ex-aluno e jornalista mineiro Renato Moraes lançou o livro “Colégio Estadual” (Ed. Conceito Editorial, 124 páginas, R$ 20), dentro do projeto “BH, a Cidade de Cada Um”. A obra faz um resgate histórico dos áureos tempos da instituição. “Tive o privilégio de estudar no Colégio Estadual no transcorrer dos rebeldes anos 1960, cursando o ginasial e o colegial. Foi, certamente, o período do apogeu da escola, que coincidiu com uma quadra efervescente e conflituosa da cena nacional, à reboque do golpe de Estado de 1964, seguido pela implantação do regime ditatorial por parte dos militares”, explica.
 
Segundo o autor, o livro tem um apelo à memória da instituição, rica em fatos e personagens relevantes para a história nacional. Em 160 anos de trajetória, passaram por lá, desde a época em que ainda era chamado de Liceu Mineiro, nomes marcantes, como Afonso Pena, Getúlio Vargas, Raul Soares, Hélio Pelegrino, Milton Campos, Fernando Sabino, Henfil, e, mais recentemente, Dilma Rousseff, Fernando Pimentel, Eduardo Azeredo, Elke Maravilha, José Mayer, Fernando Brant, Chico Amaral, Tostão, Humberto Werneck, entre outras personalidades.
 
“O Colégio Estadual desempenhou o papel de berço da formação identitária de sucessivas gerações, através do despertar precoce das noções de cidadania, de respeito à diferença, à diversidade e à pluralidade, despida de preconceitos”, diz Moraes.
 
Do retrovisor
 
A convite do Jornal Pampulha, alguns ex-alunos do Estadual Central fizeram uma viagem ao passado e trouxeram pérolas de um tempo bom. “Lembro-me com saudades do professor de história Amaro Xisto de Queiroz. Ainda quando cheguei à escola, uma aluna se virou para mim e disse: ‘Olha, aqui temos um lema: Amaro Xisto sob todas as coisas’. Caí na risada e, toda vez que o professor entrava na sala, os alunos diziam essa frase, coisa que nunca me esqueci”, conta, entre risos, a atriz Elke Maravilha.
 
Parceiro de Milton Nascimento na composição de “Travessia”, “Maria, Maria” e “Nos Bailes da Vida”, entre outras, o músico e compositor mineiro Fernando Brant, que estudou no Estadual Central na década de 1960, lembra da qualidade de ensino da instituição naquela época. “Estudei em 1963 e 1964. Chegando lá, foi uma surpresa. O nível cultural tanto dos professores quanto dos alunos era altíssimo. Isso me motivou a buscar mais e a conhecer outras coisas. Para bater um papo nos corredores a gente tinha que saber das coisas”, declara.
 
LIBERTÁRIO E VANGUARDISTA
 
Com um modelo similar ao das universidades e uma didática que estimulava a liberdade e o comprometimento dos estudantes, o Estadual Central proporcionou a seus alunos uma vivência única. “Não existe experiência similar na história do Brasil. Nunca houve nada como a formação moral, intelectual e de personalidade do Estadual. Para ingressar na escola, as crianças prestavam uma espécie de vestibular. O aluno que passasse – de qualquer nível social – entrava. Ali ele tinha livre arbítrio. Não era obrigado a assistir aula ou usar uniforme. Tinha autonomia sobre sua responsabilidade ou compromisso. Isso aos 10 anos de idade. Mas as provas eram rigorosíssimas. E, se fosse reprovado por duas vezes, não poderia continuar na escola”, revela Renato Moraes, autor do livro “Colégio Estadual” e que estudou na escola durante uma década. 
 
A tese “Escola sem Muros (2011)”, da doutora em Educação Aleluia Heringer Lisboa Teixeira, vai na mesma linha. “O espaço é uma das âncoras na representação distintiva da escola. A liberdade, entretanto, tinha um preço que era cobrado no momento dos exames, tanto nas provas regulares como na segunda época. A ausência do acompanhamento direto, policial ou punitivo deixava a cargo do aluno o exercício de encontrar o equilíbrio entre a autonomia e a responsabilidade pelos seus atos”. 
 
Ainda segundo ela, o colégio, em um dado momento, ultrapassou as fronteiras apenas do ensino curricular. “Não estudei no Estadual Central, mas dois irmãos, sim. Um deles, Ageu Heringer Lisboa, foi preso em 1968 ainda no ensino secundário e toda aquela história me marcou. O Ageu era colega do Fernando Pimentel e da Dilma Rousseff. Todos muito jovens. Mais tarde é que fui entender as condições históricas, culturais, políticas que permitiram tamanha efervescência e envolvimento na vida política do país. Sem dúvida, a escola, mesmo que não de forma intencional ou como parte de um projeto, favoreceu as conexões e os contatos de seus estudantes com a arte, política, religião e filosofia”,diz. 
 
De acordo com Renato Moraes, esta concepção libertária e vanguardista no ensino fez com que a escola revelasse, com o passar dos anos, ministros, atores, cineastas, jornalistas e literatos. “O colégio criou cabeças pensantes, à frente do seu tempo. Porém, o espírito de vanguarda da instituição começou a declinar já no período da Ditadura Militar. Ao lado da Fafich, Escola de Economia e de Medicina, o Estadual também foi um dos focos de resistência nesse período, apesar de nunca ter sido invadido”, afirma o autor. 
 
Histórico
 
O Estadual Central teve sua origem ainda no século XIX e, desde a sua criação, lá se vão 160 anos em meio às suas várias formações e nomes. Foi referência em educação no passado e, assim como várias instituições públicas de ensino, caiu também no fosso do descaso e passou por momentos de altos e baixos.
 
Com 11 mil m², as unidades I e II da escola ocupam dois quarteirões, no bairro de Lourdes. Ao todo são 50 salas de aula, auditório para 400 lugares, oito quadras e uma piscina olímpica.
 
Hoje, o colégio tem cerca de 2.000 alunos do ensino médio, divididos em três turnos (manhã, tarde e noite). São 22 turmas de terceiro ano, 24 do segundo e 18 do primeiro, além de outras seis do programa “Reinventando o Ensino Médio”, que oferece disciplinas aos alunos para áreas como tecnologia da informação e meio ambiente. 
 
Dilemas
 
Desde abril deste ano, a unidade I da instituição projetada por Oscar Niemeyer está sendo reformada, o que obrigou os alunos a serem realocados para o prédio anexo e para outro que foi alugado, na rua Rio de Janeiro.
 
Segundo o diretor-geral do Estadual Central, Jefferson Pimenta, o término da reforma, que tem verbas estudais e está orçada inicialmente em R$ 12 milhões, está previsto para 2015. “A revitalização do colégio ainda abarca a construção de um prédio só para laboratórios: biologia, física e química”. 
 
Contudo, nem tudo são louros. Nesse período, alguns alunos reclamaram que a estrutura da escola está comprometida, fato que tem prejudicado até mesmo o ensino deles. Segundo uma aluna do terceiro ano, “as reformas têm tumultuado um pouco a vida dos estudantes”, diz. 
 
A aluna menciona ainda a falta de organização. “No primeiro e segundo anos, percebi um colégio mais organizado e este ano está meio bagunçado em termos de infraestrutura por conta da reforma. Acho que quem faz a escola é o aluno. Mas nunca é demais esperar uma biblioteca melhor. No entanto, isso não depende apenas de vontade da diretoria, esbarra em outras questões, como o próprio olhar pouco sensível do governo para a educação pública”, declara a aluna.
 
Alguns fragmentos da história
 
Elke Maravilha, atriz
Lembro-me de uma piadinha do jornal mural. Hoje, ter 1,77 m é normal, mas, naquele tempo, uma loura de origem russa no meio daquela meninada chamava a atenção. E o muralzinho, para mexer comigo, criou um espaço para divulgar filmes daquela época e fizeram a divulgação de um ‘filme’: ‘Elke, a mulher de 15 metros’. Isso me fez botar um salto alto e ir para escola no outro dia”. 
 
Fernando Dolabela, empresário e escritor
“Como esquecer do folclórico Tabajara Pedroso. Ele aplicava alguns testes de perguntas e respostas e, dependendo do que se respondia a ele, o professor prenunciava o futuro da gente. Fiz o teste e ele falou: ‘Futuro promissor, eu vejo’. Numa época em que eu passava por um período turbulento, aquilo soou como motivação, coisa que não esqueço”.
 
Geraldo Veloso, cineasta e crítico de cinema
“Fui expulso por não concordar com o proselitismo político anti-esquerda do professor Pacheco. Antes disso, o Henriquinho – que viria a se tornar o famoso cartunista Henfil (1944-1988) – virou para mim e disse: ‘Peça desculpas, senão vai bombar’. E eu retruquei: ‘Tô de saco cheio, eu quero é viver de cinema. Tchau!’ E ele, sarcástico disse: ‘Mas vai viver de cinema em BH?’”
 
Jefferson Pimenta, diretor-geral do Estadual Central
“Pela escola, inúmeras pessoas passaram e ganharam destaque em diversas áreas. Seja na política, na literatura, nas artes ou no esporte. Mas o que é interessante ver é que os demais ex-alunos do Estadual também se destacaram no mercado: médicos, professores, advogados, jornalistas. E os ex-alunos sempre retornam de alguma maneira”.
 
Zilda Rosa de Jesus, secretária da escola
“A cantina atendia a todos, inclusive um grupo com deficiência visual. E as peraltices do professor Barbosinha falavam mais alto. Ele picava pedaços de mortadela e enchia de pimenta. E assim que eles experimentavam, diziam: ‘O Barbosinha está aqui!’ Entre brincadeiras, ele vivia perto deles, os guiando e dividindo conhecimento”.
 
Funcionários
 
São várias as histórias do Colégio Estadual Central, de alunos, professores e também de funcionários. Há casos curiosos como o da secretária Mariângela de Fátima Carvalho, que trabalha na escola há 36 anos. Foi lá que conheceu o grande amor de sua vida. “Depois de um namoro de dois anos e meio com o professor de biologia Marcelo de Campos Carvalho, já aposentado do Estadual Central, nos casamos. Tivemos três filhos, e dois deles estudaram no Estadual. Minha filha Adriana foi da última turma da oitava série dessa escola, em 2000, e o Daniel estudou aqui também”.
 
No período em que ainda havia seleção para ingressar no Estadual Central, a secretária Zilda Rosa de Jesus, que trabalha na escola desde 1978, se recorda da funcionária dona Rosa (já falecida), servente que arrumava vaga na escola para todos. “Ela chegava em seu bairro e anunciava para todo mundo que o Estadual Central estava recebendo alunos. Isso trouxe até certos problemas para a direção. As pessoas chegavam aqui e diziam: Mas foi a Dona Rosa que me mandou e ela falou que garante a vaga”, conta.
 
A secretária da escola lembra também do professor de educação física, Odilon Barbosa, o Barbosinha. “A cantina atendia a todos, inclusive um grupo de alunos com deficiência visual. E nessas horas, as peraltices do Barbosinha falavam mais alto.Ele picava pequenos pedaços de mortadela e enchia de pimenta e colocava nos pratos destes alunos. Assim que eles experimentavam, já diziam: o Barbosinha está aqui, apareça professor! Mas a verdade é que entre brincadeiras e molecagens o professor vivia perto deles, os guiando e dividindo conhecimento”, conta Zilda, lembrando que o professor foi o funcionário da escola a ser velado nas dependências da instituição, tamanho o carinho que todos nutriam por tinham por ele.
 
Outra figura muito conhecida no Colégio é o professor José Tavares, que lá trabalhou durante 40 anos e se aposentou em abril deste ano. “Posso dizer que o colégio é uma paixão. São inúmeras as histórias. Ao longo 40 anos naquela escola, calculo que entre alunos, professores e funcionários passaram mais de 60 mil pessoas. Sinto-me orgulhoso quando trombo com ex-alunos (gerentes de banco, juristas e médicos) e eles me cumprimentam, isso mostra o reconhecimento do meu trabalho”