Reportagem

Ouço, logo vejo

BH caminha, a passos lentos, em direção à acessibilidade de portadores de necessidades especiais a eventos culturais

Por Bárbara França
Publicado em 25 de outubro de 2014 | 04:00
 
 
Fila diversa: Público aguarda espetáculo do projeto “Teatro Acessível” élcio paraíso/bendita/divulgação

Maurílio Pereira foi ao teatro pela primeira vez em abril deste ano. Sua estreia foi com “A Primeira Vista”, peça dirigida por Enrique Diaz e estrelada por Drica Moraes e Mariana Lima, à época em cartaz no Oi Futuro. Da montagem cheia de rock’n’roll em um cenário todo rabiscado, com diálogos intensos e muita libido, o estudante ficou marcado pelo momento em que as duas atrizes conversavam sem olhar uma no rosto da outra. O detalhe até passaria despercebido para quem está acostumado a ver, mas não para ele. Maurílio é portador de deficiência visual e pode ter sua primeira experiência teatral através da audiodescrição.
 
Técnica que consiste, basicamente, em traduzir imagens em informações sonoras, sejam elas verbais ou não, a audiodescrição, assim como a interpretação por libras dos espetáculos, traz um mundo de possibilidades a portadores de necessidades especiais. Apesar disso, BH caminha a passos lentos nesta direção.
 
Mesmo tendo recebido este ano um projeto inteiro dedicado ao teatro acessível e conte com sessões aqui e acolá com recursos de acessibilidade, a capital está aquém de outras praças pelo país, como São Paulo, que conta com pelo menos cinco teatros com uma programação regular voltada para o público com deficiência visual ou auditiva. Ou o Rio de Janeiro, onde praticamente todo espetáculo que entra em cartaz nos teatros da Oi e Carlos Gomes têm sessões com opção de audiodescrição e interpretação em Libras. Festivais de cinema em Brasília e teatro em Manaus também já ofereceram os recursos para toda a programação. No Nordeste, um público cativo lota as salas de espetáculos, que cada vez mais procuram ser menos excludentes.
 
De acordo com Vera Nunes, coordenadora do Centro de Apoio ao Deficiente Visual (CADV) da UFMG, ainda que importantíssima para a inclusão cultural, a audiodescrição ainda aparece na cidade em situações muito dispersas. Experiências dos maiores interessados, a plateia, mostram que está passando da hora da capital apressar o passo no quesito.
 
Audiodescrição
 
Ainda pouco difundida na capital, menos até que a interpretação em Libras em termos de acessibilidade para espetáculos, a audiodescrição pode ser utilizada em teatros, cinemas, óperas, danças, entre outros, segundo a pesquisadora Flavia Mayer.
 
A prática permite o acesso ao ambiente, ao cenário, aos trajes, às expressões, gestos e a elementos que extrapolam o texto dos diálogos e constituem a experiência do espetáculo como um todo, sendo reconhecida como valiosa ferramenta de inclusão cultural, como considera a produtora Lara Pozzobon, da Lavoro Produções Artísticas.
 
Ela e sua equipe realizaram o “Teatro Acessível”, projeto que ofereceu, além da audiodescrição, acessibilidades como legendagem e interpretação em Libras para cinco peças de temas e formatos bem variados, entre eles, a que Maurílio assistiu. O projeto volta à cidade ano que vem, sem falta, garante produtor Fernando Pozzobon, também da Lavoro.
 
“Eu ficava pensando como seria um teatro para mim. Como seria alguém que não enxerga dentro de um teatro? Eu teria que ir com uma pessoa para descrever as cenas, mas não achava ninguém para me acompanhar. Até que apareceu essa peça com audiodescrição, foi muito bom”, lembra ele, que, na verdade, também relata a condição de muitos. Em mapeamento realizado em 2009, presente no livro “Diagnóstico de Comunicação para a Mobilização Social: Promover Autonomia por Meio da Audiodescrição”, 70% da população cega da cidade nunca tinha ido ao cinema e 50% nunca tinha visto um filme em DVD.
 
Quase cinco anos depois, os dados certamente se transformaram, mas nem tanto, acredita Flavia, co-autora da pesquisa. Ela percebe maior acesso às ferramentas e envolvimento da sociedade, mas “as ações ainda são pontuais comparadas a toda produção que temos na cidade”.
 
Para Adriana Focas, da Catibrum, que realiza anualmente o Festival Internacional de Teatro de Bonecos, a situação ainda está engatinhando. A montagem de “O Som das Cores” teve audiodescrição em BH e em outras capitais do país, e foi quando ela percebeu o quanto o recurso aqui ainda é pouco explorado. “Em Fortaleza, tivemos um público composto por 200 pessoas com deficiência visual! Aqui o número era bem menor, menos de 10 por sessão. Acho que a questão é de formação de público. É muito pouco divulgado”, comenta.
 
Dificuldades
 
De acordo com Telma Fernandes, diretora do espetáculo “Piba e o Mundo em Preto e Branco”, que também ofereceu audiodescrição em seções realizadas ao longo do ano pelo Estado, levar o espetáculo para todo mundo, sem distinção, é muito gratificante, mas os custos dos materiais – como computador e fones – dificultam sua utilização pelos grupos independentes. “O aluguel é muito caro e é preciso a contratação de um profissional para narrar ao vivo o que acontece na peça”, pondera. Feliz da vida, ela conta que hoje o grupo possui um equipamento só seu e é uma atriz quem faz a audiodescrição.
 
Fernando Pozzobon concorda que não se trata de um recurso barato, sendo necessário, além dos equipamentos, o treinamento de pessoal especializado para fazer a descrição, fazendo com que os grupos e empresas dependam ainda mais dos patrocínios e das leis de incentivo.
 
Acessibilidade e autonomia no cinema
 
Disponível para as plataformas Android e iOS, o aplicativo WhatsCine oferece acessibilidade no cinema para surdos e cegos. O programa coloca na tela de tablets e smartphones um intérprete de libras e legendas, ou emite audiodescrição do filme via fones de ouvido. Por enquanto, o recurso só está disponível nos cinemas do Shopping Frei Caneca em SP. 
 
 
É PRECISO AVANÇAR NA ÁREA CULTURAL
 
Quando da montagem de “O Som das Cores” da Companhia Catibrum de Teatro de Bonecos, Flávio Oliveira ajudava o pessoal da equipe a tornar a atuação da protagonista Alice, que perde a visão aos 15 anos, o mais verossímil possível. Tendo passado pela mesma situação mais jovem, o historiador deu várias dicas, mas durante os ensaios, pensou: “por que um espetáculo que fala sobre a cegueira não pode ser acessível também para esse público?”. Foi sugestão dele, então, a oferta da audiodescrição para o espetáculo que rodou o Brasil com uma história sobre ver apesar dos olhos.
 
A partir daí, Flávio atuou como consultor, algo que é muito importante na tarefa de traduzir um mundo de imagens para as palavras. Essa função, aliás, a psicóloga e educadora Elizabet Sá, do Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP), conhece bem. Deficiente visual, ela também foi consultora de audiodescrição dos espetáculos do “Teatro Acessível” no Oi Futuro e, trabalhando junto com a equipe da Lavoro Produções, ajudava a construir os roteiros e avaliar onde a descrição funcionava, onde era falha. 
 
Afinal, para a professora de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, Lívia Motta, fazer a audiodescrição não é tão simples quanto parece. O profissional incumbido da tarefa já figura na Classificação Brasileira de Ocupações desde o ano passado e conta até com curso de especialização na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), do qual Lívia é coordenadora pedagógica. 
 
Segundo ela, as pessoas que mais procuram a atuação são aquelas que têm afinidade com a elaboração de textos e com a língua portuguesa. No curso, dentre várias disciplinas, ensina-se que o audiodescritor deve priorizar a síntese, o que é mais importante na cena para o entendimento do espectador e que não é possível de ser apanhado pelos diálogos e narração. 
 
“A ideia é complementar o entendimento da pessoa que não enxerga com elementos essenciais para a narrativa e que não podem ser percebidos pelo texto, como o local onde está o personagem, como ele está vestido, com quem está, o que há em seu entorno...”, comenta a professora. Até informações sobre o espaço onde o espectador está, como localização do corredor, do palco, do proscênio, saída de emergência, etc, são oferecidas pelo profissional. 
 
Autonomia
 
Tudo isso buscando algo básico e que é direito de todos, a autonomia. Elizabet, por exemplo, ama teatros e cinema, mas lhe incomoda o fato de ter que depender de alguém para descrever o que se passa nas cenas. “É extremamente prazeroso você poder ir ao teatro sozinha e se sentir acolhida, sentar lá e assistir como qualquer pessoa, sem nenhuma dependência”, comenta ela, que já recebeu muitos “ssshhhh” nas salas escuras por fazer uso do chamado “cinema ao pé do ouvido” com amigos. Prazeroso também é poder fruir a peça, o espetáculo, o filme, como todo mundo. Algo que a professora Nara Ferreira, que começou a perder a visão ainda nova e hoje frequenta os espaços culturais, declara aos quatro ventos. “Sem a audiodescrição, você perde praticamente tudo. Ela gerou em mim a esperança e expectativa de voltar assistir alguma coisa por prazer”. 
 
Legislação
 
Hoje, o Ministério das Comunicações estabelece a destinação de pelo menos duas horas semanais de programação com audiodescrição nas emissoras de TV aberta que operam com sinal digital. Em espaços culturais, a recomendação é que ofereçam essa e outras acessibilidades, como a interpretação em Libras, mas não há nada obrigatório. Para Claudia Werneck, mãe da humorista Tatá Werneck e criadora da Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, esse panorama só indica que as pessoas com deficiência ainda continuam sendo ignoradas. Mas há avanços. A campanha “Teatro Acessível, Arte, Prazer e Direitos” lançada pela ONG foi incorporada este ano pelo Ministério da Cultura como ação e conteúdo de política pública. A proposta é fazer com que todas as casas de espetáculos adotem, além dos recursos já citados, legendas para pessoas surdas, visita aos cenários, programas em braile ou meio digital, letra ampliada, atendimento prioritário e reserva de assentos. 
 
 
EM BH
 
Biblioteca Pública Luís de Bessa: Uma vez a cada dois meses acontece o Cine Braille, iniciativa que apresenta filmes com audiodescrição para pessoas com deficiência visual, seguida de discussão sobre aspectos relevantes da produção. A próxima sessão acontece em novembro. 
 
Cinema ao pé o ouvido: É um projeto de pesquisa e extensão da PUC Minas voltado para a investigação da audiodescrição. Ele foi criado em 2011, pela pesquisadora Flavia Mayer e o professor Julio Pinto, o coordenador. O grupo formado por dez pesquisadores estudam técnicas e teorias envolvidas nos estudos de audiodescrição, adaptam filmes e os exibem para o público com deficiência visual. 
 
Videoteca do CAPO: Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual de Belo Horizonte possui um acervo de aproximadamente 50 filmes com audiodescrição, entre obras nacionais e internacionais. Quem quiser levar um para casa, só precisa se cadastrar e então, poderá ficar uma semana com o produto, com a possibilidade de renovação. A não ser que tenha fila de espera! 
 
OUTRAS EXPERIÊNCIAS DE ACESSIBILIDADE EM BH E NO MUNDO
 
Imagem pelo toque: Durante a exposição “Barroco Brasil Itália – Prata e Ouro”, que aconteceu na Casa Fiat de cultura entre junho e setembro deste ano, os visitantes que portavam deficiência visual puderam tocar duas esculturas que nunca tinham saído de Nápoles. O acesso às artes plásticas se dava por meio do contato físico com as obras, permitindo sentir texturas, formas e volumes que ajudavam a criar uma imagem mental do acervo e uma relação diferente com a arte.
 
Em campo: Durante a Copa do Mundo do Brasil, quatro estádios ofereceram audiodescrição: o Maracanã, no Rio de Janeiro, a Arena Corinthians, em São Paulo, o Mané Garrincha de Brasília e o Mineirão, daqui de BH. Voluntários em cada local descreviam para os torcedores detalhes da partida como linguagem corporal, expressões faciais e uniformes dos jogadores e brincadeiras das torcidas. O recurso podia ser acessado por meio de frequência de rádio, era só levar aparelho com receptor FM e fones. 
 
Show em sinais: Durante Montreux Jazz Festival, que aconteceu em julho na Suíça, a intérprete de sinais alemã Laura Shwengber traduziu o show da cantora de jazz israelense Ella Ronen para a plateia que não podia ouvir. Laura traduz shows em alemão e em inglês, mas vai muito além da letra da música. Ela também foca na expressão do artista, no movimento do corpo e em demais elementos que sugiram a sensação que a música passa. Saiba mais em: lauramschwengber.de
 
Entretenimento audiodescrito: O site Legenda Sonora, criado pelo ex-ator de teatro Diego Oliveira, fornece audiodescrição para diversos produtos audiovisuais, entre eles, vídeos divertidos da internet, como os do canal de humor do Youtube Porta dos Fundos. Com obras divididas entre categorias como “animação”, “humor”, “séries” e outras, lá o usuário pode encontrar até filmes populares do cinema mundial como “Rocky”, “Forest Gump”, “007” e “Stars Wars”. Acesse: legendasonora.com.br.