Reportagem

Ponto de equilíbrio

Redação O Tempo

Por Jessica Almeida
Publicado em 20 de fevereiro de 2016 | 04:00
 
 
Crochê por BH - Marcela faz parte do coletivo Vestíveis Urbanos, que promove encontros para ‘cobrir BH de fios’ Leo Fontes

Desde que se entende por gente, a designer de moda Marcela Melo, 40, tricota, faz crochê e borda. “Tenho lembranças do meu tempo de escola das outras crianças brincando no pátio e eu fazendo tricô na hora do recreio”, conta. Paulistana, ela acredita que tais atividades a conectam com suas origens. “Meus pais são mineiros e eu sempre vinha pra Minas nas férias. Aprendi a fazer com minha tia que morava aqui e nunca mais parei”, diz.

Desde que se mudou para Belo Horizonte há 20 anos, Marcela vai à casa da tia todos os domingos bordar, tricotar ou fazer crochê. “Hoje ela já está bem velhinha, com 87 anos, e já não faz mais. Mas é um momento em que sentamos juntas, levo algo que estiver fazendo e, se achar algum defeito, ela corrige. Minha tia me conta histórias da nossa família, da minha avó e dos outros irmãos que já faleceram. Pra mim, esses encontros com ela são superimportantes”, afirma.
Mais do que uma aproximação com sua história, a designer enxerga no bordar e tricotar uma espécie de meditação. “Você fica ali totalmente inteira no momento. Parece que sua cabeça meio que esvazia e fica só no movimento da agulha e da linha. Sou muito ansiosa e isso me acalma. Minha tia dizia que ‘o crochê não rende quando estamos com a cabeça boa’. Eu achava graça, mas hoje percebo que é ótimo para desestressar”, comenta.
 
O que Marcela e sua tia constataram é cientificamente comprovado. Uma série de pesquisas indicam que a lista de benefícios para a saúde decorrentes da prática de tricô, crochê e bordado – atividades outrora relacionadas às nossas mães e avós e que andam conquistando cada vez mais as novas gerações – é bastante extensa.
 
De acordo com o médico norte-americano Herbert Benson, professor de medicina integrativa na Universidade de Harvard, o trabalho com agulhas e linhas induz a um estado fisiológico similar ao provocado pela meditação transcendental. Com isso, a pressão arterial e os batimentos cardíacos diminuem, além de as ondas cerebrais ficarem mais lentas, e da redução dos níveis hormonais relacionados ao estresse.
 
Um estudo da Universidade de Columbia Britânica, no Canadá, realizado com mulheres com anorexia nervosa que aprenderam a tricotar, constatou que, em 70% dos casos, a atividade ajudou a controlar seus medos e as impediu de remoer seus problemas.
Em outra pesquisa, liderada pelo psiquiatra norte-americano Yonas E. Geda, no instituto de pesquisas médicas Mayo Clinic, foram entrevistadas 1.321 pessoas com idades entre 70 e 89 anos sobre as atividades cognitivas com as quais se envolveram na terceira idade. O estudo, publicado no “Journal of Neuropsychiatry & Clinical Neurosciences” concluiu que aqueles que praticavam ofícios manuais, como tricô e crochê, tiveram menor propensão ao comprometimento cognitivo leve e à perda de memória.
 
Exercício
O neurocirurgião Luiz Daniel Cetl, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que essas atividades têm a capacidade de interferir na plasticidade cerebral, ou seja, na predisposição que o cérebro tem de se remodelar em função das experiências do sujeito, reformulando suas conexões conforme as necessidades do ambiente. “É como se acontecesse no cérebro o mesmo que o exercício físico provoca no corpo. É um processo lento e tem seus limites, mas é possível melhorar certas capacidades”, explica. No caso do tricô, do crochê e do bordado, o médico enumera a coordenação motora, a noção espacial e o planejamento como habilidades que podem ser aprimoradas.
 
O bem-estar proporcionado é tanto que a historiadora Mannuella Luz, 37, tem passado cerca de sete horas entretida com linhas, agulhas, lãs e bordados. “O corpo vai sendo induzido a um estado mais harmônico, porque o ponto tem que ser muito regular, então o coração não pode estar acelerado. Normalmente eu sou muito trêmula, minha avó e minha mãe até riam de mim, achavam que eu não daria conta. Mas o corpo entra num ritmo que eu consigo controlar”, conta.
 
Práticas auxiliam terapias diversas
No campo da terapia ocupacional, atividades manuais como tricotar e bordar são utilizadas com diversos propósitos. “Trabalhamos desde aspectos motores, como reabilitação de membros superiores, até habilidades cognitivas como concentração, memória, atenção e mesmo planejamento, que são necessárias para a realização desse tipo de trabalho”, explica o terapeuta ocupacional Adnaldo Paulo Cardoso. 
 
Há também, de acordo com Cardoso, os aspectos psicossociais. “Ao produzir algo dotado de estética, que pode ser apreciado por outras pessoas, há o exercício da criatividade. A pessoa fala de si por meio daquilo, aprende a lidar com limites, dificuldades e ajuda no processo de autoconhecimento, de formação da autoimagem. E há uma função social também quando ela deixa aquilo como um legado, presenteando outra pessoa”, diz.
 
A psicóloga e psicanalista Jaci Ferreira encontrou no bordado uma forma de trabalhar a psicoterapia. Há oito anos ela dá aulas de bordado e atualmente tem seis turmas nas quais conduz cerca de 50 alunas a um processo de expressão da subjetividade. “Ao mesmo tempo em que estão num ambiente de convivência existe uma introspecção, uma imersão ao mundo interior de cada uma”, explica. “À medida que a aula transcorre, elas emergem desse momento de introspecção e aquilo se torna real, concreto. Muitas vezes é nessa troca, quando uma fala e a outra ouve, que aquilo produz uma mudança”. 
 
Assim como Jaci, a coach canadense Karen Zila Hayes conduz, em Toronto, programas de terapia por meio do tricô, incluindo um que ajuda seus clientes a pararem de fumar. Embora reconheça as maravilhas que o tricô pode proporcionar, Karen alerta para o que chama de “knitting safety” (segurança ao tricotar, em tradução livre). “Tricotar é viciante, devido ao aumento da produção de ondas alfa no cérebro e da liberação de endorfinas. Por conta disso, é absolutamente crucial que as pessoas sejam ensinadas de acordo com a técnica apropriada. Já conheci inúmeros tricoteiros que têm dor crônica de lesões por esforços repetitivos e ainda assim eles não querem parar”, adverte. 
 
Fios e linhas colorem a cidade

Desde 2005, um movimento iniciado nos Estados Unidos vem se espalhando pelo mundo com a proposta de usar os fios e agulhas também como forma de experienciar a cidade. Chamado de “yarn bombimg” (bombardeio de linhas), é uma arte urbana assim como o grafite e tem como objetivo cobrir propriedades públicas com tricô ou crochê.

Belo Horizonte também entrou nessa onda e conta com ao menos duas iniciativas nesse sentido. Uma delas é conduzida pelo coletivo Vestíveis Urbanos (vestiveisurbanos.wordpress.com). Periodicamente, o grupo convoca encontros para fazer intervenções urbanas com as linhas. “É uma forma que encontramos de questionar nossa relação com o tempo, retomando uma técnica tradicional, num momento em que abrimos mão do excesso de tecnologia e focamos em nós mesmos”, explica a designer de moda Marcela Melo, 40, uma das integrantes do coletivo. “E também para tentar atrair um outro olhar para a cidade, com intervenções que não são agressivas e muitas vezes despertam a memória das pessoas”.

Com proposta parecida, há também o Clube do Tricô (facebook.com/triconarua), que já juntou tricoteiros – mulheres e homens, de crianças até idosos – em diversas praças da cidade deixando nelas sempre um rastro feito de linhas. “O objetivo é criar uma oportunidade para as pessoas se encontrarem, promovendo a ocupação do espaço público e o tornando mais bonito”, diz a artista plástica Mércia Bicalho, 51, responsável pela iniciativa. “É um momento de tranquilidade em que as pessoas podem explorar sua criatividade, criar beleza juntos e, muitas vezes, fazer amigos”.

A proposta acabou sendo um incentivo para que o filho de Mércia, o estudante Gabriel de Mattos, 22, começasse a fazer tricô. “A possibilidade de confraternizar, com música, num piquenique, cobrir um banco ou uma árvore com tricô, ocupando um espaço público, me motivou bastante”, conta ele, que não acredita que mulheres são mais aptas à prática da atividade. “Coisa de homem, coisa de mulher, não existem essas categorias. O tricô é uma forma de expressão e é pra todo mundo que tiver interesse”, completa.

Na moda

Assim como não está mais restrito somente às mulheres, o tricô também deixou de ser uma técnica associada a suéteres e cardigãs. Pioneira no uso do material na moda, a diretora criativa da marca belo-horizontina Coven afirma que tem havido uma valorização de seu uso no mercado. “As pessoas estão percebendo que é possível fazer peças autorais, diferenciadas e que vestem muito bem”, comenta. “É um material menos rígido e até mais sustentável, por ser mais reutilizável”.

E é isso que tem acontecido. A historiadora Mannuella Luz, 37, percebeu, ainda adolescente, que a habilidade com as agulhas, aprendida com a avó na infância, poderia ser uma ferramenta útil para acompanhar a moda. “Nos anos 1990, houve um ‘revival’ da década de 1970 e o crochê estava em alta. Então, comecei a fazer nas minhas roupas”, conta. O hábito de personalizar o próprio guarda-roupa segue desde então e, atualmente, ela tem mais de 20 peças criadas ou adaptadas com suas próprias mãos.

Embora as avós e tias mais velhas ainda sejam, em muitos casos, fonte primária do conhecimento, uma nova geração, como Mannuella, tem preferido não esperar o embranquecimento dos cabelos para se dedicar à prática de atividades como o bordado, o crochê e o tricô nos últimos anos.

Nos Estados Unidos, o Craft Yarn Council (Conselho de Atividades com Fio, em tradução livre) reporta que 33% das mulheres do país com idades entre 25 e 35 anos sabem realizar esses tipos de trabalho manual. Aqui no Brasil, também é perceptível um certo “rejuvenescimento” entre os praticantes que, inclusive, deixaram de ser estritamente mulheres.

Uma das consequências disso tem sido a diversificação da produção, que vai muito além dos tradicionais enxovais de casamento ou bebê, e podem ser considerados trabalhos artísticos. “Atualmente, estou trabalhando numa série inspirada em ilustrações científicas feitas no século XVIII pela naturalista e ilustradora alemã Maria Sibylla Merian. Também estou ajudando uma tia a transformar em bordados as fachadas de prédios históricos da cidade de Brasília de Minas (região Norte do Estado)”, diz Mannuella.

Ainda mais jovem, a jornalista Nina Rocha, 23, também aprendeu com a avó quando criança – no seu caso, o bordado – e parou por uns anos até, por acaso, voltar a praticar. Sua produção é estritamente de quadrinhos decorativos com referências à cultura pop. “Os primeiros que fiz foram pra mim ou para presentear amigos, coisas com as quais sabia que iam se identificar, como letras de música engraçadas como pagodes e Sidney Magal”, conta.

Ao mostrar as peças em suas redes sociais, o interesse foi grande e ela acabou transformando a “brincadeira” numa fonte de renda. Na página “Bordei pra você” (facebook.com/bordeipravocê), ela recebe pedidos e expõe a produção, que vai do Submarino Amarelo dos Beatles a trechos de um sucesso de Wesley Safadão.

Curiosidades

História - O bordado tem origem com o ponto cruz, ainda na pré-história, usado para costura das vestes, feitas de peles de animais. As agulhas eram feitas de ossos e, em vez de linhas, tripas de animais ou fibras vegetais eram usadas como fios. 

Egípcio - As peças de tricô mais antigas que existem foram descobertas no Egito e são do ano de 1.200 d.C. O tricô era feito pelos homens, enquanto as mulheres se incumbiam de produzir o fio com a roca de fiar.
 
No consultório Anna Freud, filha de Sigmund Freud e psicanalista como ele, gostava de tricotar enquanto atendia seus pacientes no consultório em Londres, como conta a empregada dos Freud, Paula Fichtl, em seu livro “La Famille Freud au Jour le Jour: Souvenirs de Paula Fichtl” (sem tradução para o português). 
 
Museu BH conta com um Museu do Bordado. O acervo tem toalhas, lençóis, fronhas, toalhas de batismo e camisolas, algumas datando de 1790. A sede fica na rua Jornalista Afonso Rabelo, 47, no bairro Cidade Nova. Funciona somente com visitas agendadas. Informações pelo telefone 3484-1067.