Reportagem

Quanto mais blocos, melhor 

Incansáveis - Foliões que tocam em mais de dez blocos falam da experiência

Por Jessica Almeida
Publicado em 30 de janeiro de 2016 | 04:00
 
 
aleatorio Pedro Gontijo

Já faz algumas semanas que é difícil encontrar a analista comercial Marianna Arpaia, 31, sozinha por aí. Desde que os blocos de Carnaval de BH deram início a uma agenda mais intensa (confira programação nas páginas 4 e 5), ela está sempre acompanhada do fiel escudeiro: seu surdo. Eu o carrego pra todo lado, inclusive para o trabalho. Brinco que minhas amigas que me deram ele de presente nunca mais me viram”, conta Marianna, que, mesmo não tendo carro, se vira e leva o enorme instrumento no ônibus mesmo.

O “sacrifício” – que ela faz com o maior gosto – é para dar conta do desafio que vem por aí: participar de 11 blocos ao longo da folia. Desde que começou a tocar, em 2014, esse número aumenta a cada ano e, embora tenha que encarar uma verdadeira maratona, ela não se vê curtindo o Carnaval de outro jeito.

“Depois que entrei para as baterias, nunca mais consegui sair. Me deixa feliz, extravasa sentimentos, emoções, faz bem pra alma. É arrepiante ajudar o Carnaval acontecer”, diz. “Tanto que, quando ele chega ao fim, é como se fosse o término de uma relação, dá tristeza porque toda a rotina, a convivência com aquelas pessoas, só vão acontecer de novo no ano seguinte”.

Entre os cerca de 1,3 milhão de foliões esperados somente nos mais de 200 blocos de rua que sairão na cidade, segundo estimativa da Belotur, casos como o de Marianna se repetem. Para a analista internacional Marcela Linhares, 25, que vai tocar timbal ou agbê em dez blocos, vale até ensaiar das 22h à 0h. “Eu vivo pra isso”, brinca. “Mas é que esse é o horário que todo mundo pode. O timbal tem alguma coisa, acho que me conectei. E ele exige um esforço enorme, então me dedico tanto pra melhorar, porque tenho vontade de tocar muito bem”.

Até tem gente que consegue tocar apenas em dois ou três blocos e se dar por satisfeito, mas, definitivamente, não é o caso do estudante Jhonatan Melo, 24. Para ele, que vai estar em 15 blocos se dividindo em atividades como cantar, reger ou tocar surdo, é preciso estar envolvido com a música para conseguir aproveitar a folia plenamente. “Até já tentei curtir de fora, mas não consigo”, revela.

Peculiaridades

Embora tenha experiências anteriores com música e até tenha formado uma banda de forró com amigos que fez nas baterias, para ele, tocar nos blocos é muito mais intenso do que no palco. “Tocar numa banda é legal, mas o Carnaval é pra quem quiser chegar. É emocionante ver muita gente ocupando a rua de um jeito que não ocupa no cotidiano. A rua é um palco pra todo mundo”, diz.

Além da emoção peculiar, o geógrafo Alfredo Costa, 28, que vai tocar saxofone em 13 blocos, acredita que participar da festa exige mais habilidades dos músicos. “No palco é confortável, tem pedestal pra partitura, banquinho, água. Na rua, além de não ter nada disso, você está no meio da multidão, as pessoas trombam em você, te empurram, é difícil até pra andar. Você aprende a lidar com o instrumento de outra forma, manuseá-lo e até soprá-lo de outro jeito”, diz músico, que inclusive precisou pesquisar formas de tornar seu sax mais potente para atender às condições de uma boa performance na rua.

Assim como seu trompete mudou a relação que o arquiteto Pedro Fonseca, 35, tinha com o Carnaval – que aliás era nula, afinal ele sempre fugia –, a festa de Momo também mudou sua relação com o instrumento. Até 2013, quando começou a participar dos blocos, ele nunca tinha tocado em público, era um hobby que encarava de forma solitária.

“Era um negócio que eu fazia sozinho em casa, ouvindo meus discos de jazz e querendo fazer igual”, conta. “O que mudou foi que eu passei a conhecer muita gente por causa do instrumento, o que o elevou a música a outro patamar, criou uma função social. Fiz amigos que gostam que eu toque e esperam que eu faça isso. Trouxe a música pra um lugar muito diferente na minha vida”.

Em 2016, o arquiteto vai tocar em dez blocos, de estilos e ritmos diferentes. Esse envolvimento também o fez ouvir e aprender músicas que, não fosse o Carnaval, ele sequer saberia que existem. “Com a proximidade da data essas demandas aparecem, a turma vai tendo as ideias. Do bloco Garotas Solteiras (que vai tocar músicas de divas pop, como Beyoncé, Rihanna e Madonna, além de funk e outros gêneros), por exemplo, eu diria que não conhecia 98% das músicas. Mas é muito legal mesmo assim, porque o que motiva a gente é muito mais a reação das pessoas. Não estou tocando pra mim, mas pra quem está ouvindo, e ver que o povo gosta é o que dá prazer”, afirma.

Divas na folia

Um dos fundadores do Garotas Solteiras, que sai pela primeira vez, Jhonatan Melo não só se ocupa dos ensaios praticamente diários, mas também de criar arranjos e adaptar as canções para um formato mais carnavalesco, ao lado da estudante Daniela Ponce de Leon, 24, amiga com quem divide a regência do bloco.

“Basicamente precisamos estudar os instrumentos para entender a função de cada um, escutamos as músicas e tentamos encaixá-las nas levadas e viradas que conhecemos”, conta Daniela, que, entre regência e surdo, estará em 13 blocos. “Não importa se é Beyoncé, Anitta ou Lady Gaga, nossa obrigação é fazer com que o repertório tenha cara de Carnaval”, acrescenta Jhonatan.

Chegar ao fim é um desafio

Na segunda-feira de Carnaval do ano passado, enquanto tocava trompete no bloco Corte Devassa, o arquiteto Pedro Fonseca, 35, precisou tocar muito alto em determinado momento e com isso lesionou uma corda vocal. Acabou impedido de tocar não só nos blocos seguintes, mas durante um mês. Pior que o dele foi o caso de um conhecido que já no primeiro dia levou uma cotovelada em seu trompete, cortou o lábio e não pôde tocar sequer um dia.

 
A analista comercial Marianna Arpaia, 31, por sua vez, se descuidou e esqueceu o protetor solar. A consequência foi uma bolha na testa – fora o inevitável roxo no joelho, por conta do choque constante com seu surdo.
E a analista internacional Marcela Linhares, 25, já perdeu 3 kg e está com o sono atrasado desde que a rotina de ensaios apertou, no início do mês. Sem contar os machucados que fazem com que sua mão nem sempre aguente acompanhar o ritmo de seu timbal.
 
Por mais que a vontade e a empolgação sejam os requisitos fundamentais, assim como no caso da corrida, uma maratona de blocos é uma tarefa muito desgastante e se alguns cuidados básicos não forem tomados, o atleta-folião certamente terá seu desempenho comprometido. Marianna, que já se preocupava com isso, vai redobrar a atenção este ano. 
 
“Procuro me alimentar muito bem no café da manhã e, quando volto pra casa, evito comer na rua e beber além da conta –, mas sempre rola uma cervejinha ou um catuçaí (drink de catuaba com açaí)”, admite. “Tomo bastante água e tento voltar cedo para dormir bem e ficar inteira no dia seguinte. Ano passado me esqueci do filtro solar, mas esse ano vou levá-lo na bolsa”, conta a surdista, que também usa joelheira para amortecer o contato com o instrumento.
 
Sopro
Quem toca no naipe dos metais precisa ter mais cautela porque, além de serem instrumentos mais sensíveis, qualquer acidente pode resultar num ferimento grave, uma vez que são tocados com a boca. “Sempre nos posicionamos à frente da bateria e pedimos amigos e acompanhantes para fazer um cordão à nossa volta. Isso é importante porque à medida que o pessoal vai bebendo, se empolgando, chega gente pulando, esbarrando e pode quebrar os instrumentos ou nos machucar”, explica o geógrafo e saxofonista Alfredo Costa, 28, que sempre vai de tênis, roupas confortáveis e chapéu, além de levar uma mochila de hidratação com água e gelo – embora muita gente pense que seja cachaça – e eventualmente troca o sax pelo surdo para não se sobrecarregar. 
 
Para conseguir dar conta do recado
Proteja-se do sol - Aproveite que uma das graças do Carnaval é o uso de adereços e abuse de chapéus e derivados. Nunca dispense o filtro solar, ainda que esteja nublado – como parece que vai ser o caso de BH.
 
Vista-se com conforto- Criar fantasias é uma das partes mais divertidas da folia, mas coloque o conforto como prioridade, afinal, o que pode parecer apenas um pequeno incômodo no início pode se transformar numa grande dor de cabeça depois de algumas horas. Adote a postura também para os calçados e dê preferência àqueles que não corram o risco de arrebentar.
 
Coma bem - Aproveite que você está onde mora e antes de sair de casa forre o estômago com uma refeição reforçada, mas que não seja pesada. “Peixes e frutos do mar apresentam um risco muito grande de darem diarreias. Maionese é arriscadíssimo, e os molhos prontos também devem ser evitados”, recomenda a nutricionista Paula Simões Garcia, do Serviço Social da Construção de São Paulo (Seconci-SP). Carregue lanches ou frutas na bolsa e evite comer em locais em que você não conheça a procedência dos alimentos. 
 
Beba água - O catuçaí e a cervejinha são os reis do Carnaval de BH, mas não se esqueça que eles não servem para a hidratação. Se puder começar a tomar mais água dois ou três dias antes da folia, melhor.
 
Use amortecedores - Se for tocar instrumentos grandes como o surdo ou o timbal, use joelheiras e caneleiras. Correias e outros acessórios podem tornar o uso de outros instrumentos mais confortável.
 
Outro olhar para a cidade
Todo esforço ou desgaste por viver os dias de Carnaval de forma tão intensa é recompensado, os maratonistas garantem. “O negócio toca no coração. A vontade de tocar em muitos blocos não é uma coisa forçada, mas somos atraídos pra isso, por conta das pessoas, da emoção e do significado dessa festa pra cidade”, explica a analista internacional Marcela Linhares, 25, que toca timbal. “É por isso que eu não me arrependo nem um pouco da canseira, inclusive me orgulho e espero que continue assim".
 
O geógrafo e saxofonista Alfredo Costa, 28, concorda. “Quando chega o Carnaval de fato, com tudo preparado, as pessoas fantasiadas, os amigos em volta, cada desfile é como se fosse o primeiro. Quando o apito soa pela primeira vez eu fico até arrepiado”, declara. “É muito bom ver gente de todo tipo se divertindo numa situação que estamos ajudando a acontecer. Isso pra mim não tem preço”.
O caráter aberto e em constante construção do Carnaval de BH é um dos principais responsáveis por esse sentimento. É isso o que o servidor público e trompetista Bruno Leão, 30, acredita ser seu maior motivador para encarar a maratona de 14 blocos que o espera. “Aqui, a gente tem o tempo todo a sensação de que está criando. Existe abertura para as ideias serem postas e mesmo algo que surgiu na semana passada pode ser incorporado. A possibilidade de construir a todo momento algo que é pra sua cidade, escolher como usufruir dela e, no fim das contas, ajudar a criar um legado para outras pessoas, para mim, é o que mais faz valer a pena”, afirma o trompetista que perdeu a vergonha de tocar graças aos blocos e hoje transformou isso em uma de suas formas de sustento.
 
Novas experiências
Sem contar o outro olhar e outros tipos de experiência com relação ao espaço público que a folia possibilita. “No dia a dia, estamos habituados a uma cidade que existe para alimentar a economia. Durante esses dias de festa, ela entra num ritmo diferente, a ocupação da rua é espontânea e ela se torna um lugar mais acolhedor”, comenta o estudante Jhonatan Melo, 24, regente, cantor e surdista de vários blocos. 
 
Embora seja uma das principais vias de Belo Horizonte e ele já tenha passado por ela inúmeras vezes em seu carro, o arquiteto e trompetista Pedro Fonseca, 35, nunca tinha subido a avenida Afonso Pena a pé, até começar a tocar no Carnaval. “Muitos lugares que no cotidiano a gente quase não percebe, que são quase como um borrão, a gente acaba vivenciando de uma forma muito mais honesta. Isso mudou minha forma de enxergar e pensar a cidade”, conta. “Sem contar que mistura gente da periferia com quem mora nos bairro nobres e acelera esse tipo de contato, amplificando a função social do espaço público”.