Reportagem

Vai deixar saudades...

Adeus: Após cumprir um papel fundamental na história da internet no Brasil, Orkut acaba dia 30

Por Jessica Almeida
Publicado em 27 de setembro de 2014 | 03:00
 
 
Ródney Arôuca administra o grupo ‘Orkut - Backup’ para guardar pérolas MOISES SILVA

Ele parou no tempo. E isso, no universo frenético em que está inserido, é pecado mortal. Outrora a maior rede social do Brasil – chegando, no auge, a 40 milhões de usuários – o Orkut dá seu adeus definitivo no próximo dia 30 (quarta), quando o Google vai tirá-lo do ar, fechando um ciclo que começou em 2004. A notícia não chegou a ser uma surpresa, já que não é de hoje que ele vai mal das pernas. No entanto, não deixou de ser um baque, não só para os muitos usuários que ainda se mantinham ativos – eram 6 milhões em dezembro do ano passado, segundo a consultoria de mensuração de audiência comScore –, mas para outros tantos que guardam um carinho especial pelos tempos áureos da rede e que dela sentem “sdds” (saudades, em abreviação comum na internet).

A nostalgia é justificada, afinal o Orkut tem um papel fundamental na história da internet no Brasil. “Foi uma grande revolução social mesmo, porque, como não tinha hierarquia, o meu espaço lá dentro era igual ao do milionário e do cara lá no sertão”, explica Bia Granja, fundadora do youPIX, plataforma focada em discutir a cultura da internet.  “Ele acabou mostrando um Brasil verdadeiro pra quem vivia numa bolha. Daí, inclusive, veio a expressão ‘orkutização’, que seria quando as pessoas mais pobres se apropriam de uma coisa e a estragam. Mas não é estragar, é usar do modo delas. Outro legado importante foi como lugar de mobilização, em que a fala de pessoas comuns começou a ter mais peso. Um exercício de empoderamento que acabou culminando com os protestos de junho de 2013”, diz.

Muita gente, inclusive, passou a usar o computador e a internet pra poder entrar no Orkut, como lembra o pesquisador da área de engenharia de software e “provocador-chefe” da rede de empreendedores Ikewai, Silvio Meira. “Para um número muito grande de pessoas que não consome cultura num sentido mais formal (indo a um concerto, por exemplo), o que importa é o relacionamento com as pessoas, com os amigos. E isso criou no imaginário de milhões a necessidade de entrar na internet, o que acabou contribuindo para o processo de inclusão digital no país”, explica.

Há muito tempo, no entanto, Meira previu que a ferramenta estava fadada ao óbito. Em 2011, antes mesmo de o Facebook ultrapassar oficialmente o Orkut em número de usuários, o especialista deu uma entrevista à revista “Veja” dizendo que a rede social já estava morta do ponto de vista da inovação e do negócio. “Teve gente que me perseguiu, disse que eu era um idiota, mas antes de 2009 já era óbvio que o Google não tinha nenhuma estratégia para garantir a sobrevida do Orkut, que foi um acaso tecnológico dentro da empresa”, explica.

Diário virtual

Muito antes do anúncio oficial do fim, usuários brasileiros já davam indícios de que sentiam falta da “internet arte, internet moleque” dos tempos de Orkut. Sinal disso são as páginas “sdds orkut” e “Unidos Pelo Orkut”, criadas no Facebook em agosto de 2012. A primeira tem mais de meio milhão de curtidas e, no início, trazia “pérolas” retiradas do Orkut. Hoje não se restringe mais ao que acontecia naquela rede, publicando qualquer imagem que traga em si o “espírito” que ela trazia. A segunda, com cerca de 65 mil curtidas, se dedica a comparar o Orkut a outras redes sociais, mostrando como ele era melhor – sempre com muito humor. Há ainda a “Comunidades do orkut”, criada no início de 2013, que tem 24 mil seguidores e reúne comunidades com propostas engraçadas, uma das principais características da rede social.

No site “BuzzFeed”, um post elenca os “30 motivos que fazem do Orkut o melhor e mais louco site de todos os tempos”, foi visto mais de 130 mil vezes. Nele são lembradas práticas muito específicas do tempo orkutiano que nenhuma outra ferramenta absorveu, como o envio de “depoimentos” para homenagear os amigos, as avaliações de quão “confiáveis, legais e sexies” eles eram e práticas como só adicionar quem deixasse “scrap” (recado), além do uso dos depoimentos como mensagens privadas, já que o sistema próprio do Orkut para isso era falho. Outro traz “27 imagens que vão convencer o Google a cancelar o fim do Orkut”.

Para o autor dos posts, o redator do site Rafael Capanema, a comoção é motivada muito mais pela lembrança de uma época do que pela falta da plataforma em si. “Não é que as pessoas queriam voltar, senão elas estariam lá. O que vai fazer falta é o espírito mais livre que existia naquele tempo”, diz.

O que não quer dizer que o Orkut não tenha mérito por provocar isso nas pessoas. Afinal, o mensageiro instantâneo MSN Messenger chegou a ter cerca de 50 milhões de usuários no Brasil e sua aposentadoria, em abril do ano passado, sequer gerou frisson. Para Bia Granja, isso tem a ver com a forma de apropriação de cada plataforma. “O MSN era só uma ferramenta de bate-papo, não era repositório da vida, do que eram as personalidades, não tinha as comunidades que as definiam. O Orkut foi grande diário pessoal de muita gente durante muito tempo e ninguém joga diário fora”.

Chineses podem pôr em risco supremacia do Face

Desde que suplantou o Orkut, o Facebook reina absoluto como maior rede social do Brasil (com 76 milhões de usuários atualmente) e no mundo (1,15 bilhão, no total). E a professora do departamento de comunicação social da UFMG, Joana Ziller, acredita que essa supremacia deve continuar. “No curto prazo, é bem provável que ele mantenha a força. Mas a gente começa a ver outras que vão se afirmando sem substituí-lo, como o Instagram e o WhatsApp”, diz. Ambas, inclusive, foram compradas pela empresa de Mark Zuckerberg. A compra faz parte de sua estratégia de se manter no topo.

Daqui a alguns anos, no entanto, o pesquisador de engenharia de software Silvio Meira acredita que farão parte da nossa realidade as ferramentas chinesas. “O gigante de comércio eletrônico Alibaba Group entrou na bolsa de valores na semana passada levantando US$ 21,8 bilhões. Para se ter uma ideia, o Facebook, quando entrou, levantou US$ 16,01 bilhões. Lá, as empresas de tecnologia têm liberdade para crescer sem a concorrência das grandes ocidentais e chegam aqui já com um mercado gigantesco”, explica. Meira diz que, no futuro, provavelmente vamos ouvir falar das redes sociais chinesas QQ e Sina Weibo.

Nova tentativa

O próprio Orkut Buyukkokten, turco criador da rede social que batizou com o próprio nome, está em uma nova empreitada nesse ramo: a Hello Network.

A página do projeto que ainda não foi lançado oficialmente o descreve como “uma comunidade única de usuários que celebram a amizade, imaginação, expressão e engajamento autêntico em um ambiente seguro”. Além de ter uma identidade visual roxa, como o Orkut, a rede também deve se organizar sob a lógica das comunidades.

 

MEMÓRIAS DOS ÓRFÃOS DO ORKUT

Colecionar scraps, dar uma conferida na sorte do dia, fazer novas amizades, discutir, e até mesmo brigar nas comunidades, trocar depoimentos, vibrar quando aumentava seu índice de “legal”, “confiável” e “sexy”, colecionar fãs, achar informações sobre qualquer assunto que você pesquisasse. E, posteriormente, brincar com os aplicativos, como o Colheita Feliz e o Buddy Poke. Mais do que curtir tudo o que foi proposto no projeto ‘Orkut’, o brasileiro foi além. 
 
Berço da “zoeira” na internet, a rede social foi apropriada de maneiras que devem ter deixado seu criador de cabelo em pé. Um dos principais exemplos disso são as comunidades, que foram de espaço para a reunião de pessoas em torno de determinado assunto a piadas em si mesmas – com as duas funções coexistindo. 
 
Um dos maiores criadores de comunidades-piada foi o hoje publicitário paulistano Bruno Predolin, 27. Usando um perfil em que se identificava apenas como “B!” e não mostrava seu rosto – para ter liberdade de inventar sem ser considerado “sem noção” –, ele foi o autor de 715 delas, como as autoexplicativas “Leitores de Livro Alheio” e “Enganadores de Si Próprios” e a “Meu Plano de Fuga na Infância”, cuja descrição era “Dizia que ia sair de casa, arrumava as coisas, batia a porta e saía gritando ‘Nunca mais vou voltaaaar’. Dava uma volta no quarteirão e voltava chorando para casa”. Todas tinham mais de 3.000 membros (número grande para a época).
 
“Era uma forma de exercitar a criatividade. Basicamente, eram ideias que eu tinha durante o banho e o sono – dormia com um caderninho do lado cama e, no dia seguinte, criava as comunidades”, lembra. As boas ideias da época do Orkut acabaram rendendo a ele um emprego. “Eu comecei a colocar que era o ‘B!’ no meu currículo e isso gerava assunto nas entrevistas. Acabei conseguindo uma vaga para trabalhar com redes sociais”, conta.
 
Menos popular, mas carregado do mesmo espírito era o comportamento do designer belo-horizontino Ródney Arôuca, 26, que criava perfis falsos (“fakes”, como eram chamados) ou alterava o seu para fazer graça. “Eram praticamente meus heterônimos, eu mudava minha atitude completamente”, diz. “Uma vez, eu mudei o meu perfil de forma a fazê-lo parecer com um de um padre, entrei numa comunidade sobre ‘Pokémon’, cheia de adolescentes, e escrevi um texto imenso sobre como o desenho japonês era uma coisa demoníaca, citando versículos da Bíblia e tudo”, diverte-se.
 
Rodney, por acaso, é hoje um dos membros fundadores do grupo “Orkut – Back-up” no Facebook, que tem cerca de 14 mil membros e a proposta de armazenar o maior número de momentos divertidos da rede que vai acabar. “Era um grupo de uns 30 amigos que eu inclusive conheci no Orkut, nós brincávamos de mudar seu nome de tempos em tempos. Quando saiu a notícia de que o Google iria encerrá-lo, nós mudamos para o nome atual e ele começou a crescer”, conta. 
Os integrantes originais acabaram migrando para um novo grupo e deixaram o antigo para os saudosos do Orkut. A também designer Bela Bordeaux, 24, foi uma das amigas que Rodney chamou para ajudar a administrar o novo formato do grupo, por seu humor parecido com o dele e, obviamente, por ter sido usuária assídua do Orkut.
 
“Eu usava pra pesquisar assuntos do meu interesse, mas também gostava da idiotice”, diz. Ela também praticava a arte do “stalkeamento” (vigiar a vida dos outros sem que eles soubessem), uma das funções em que o Orkut era mais eficiente – pelo menos antes da ferramenta que passou a denunciar visitas recentes. “Eu ‘stalkeava’ algumas pessoas em quem eu tinha interesse afetivo, mas muitas eu acompanhava sem nem saber quem eram, só porque as achava engraçadas”, lembra.
 
Última tentativa
 
Para os usuários que seguem ativos no Orkut até hoje, houve um pequeno sopro de esperança: o estudante paraibano Peter Shelton, 23, criou uma petição online direcionada ao Google no site Avaaz, solicitando à empresa que não encerrasse a rede social. O documento chegou a quase 90 mil assinaturas virtuais, mas o gigante das buscas sequer deu uma resposta aos requerentes. 
A boa notícia é que ele encontrou alternativas. “Existe o VK, que é russo e une o útil ao agradável: a linha do tempo do Facebook e as comunidades do Orkut. E tem também o Grupia, que é uma startup brasileira para onde algumas das comunidades têm migrado”, diz.
 
SALVE SUA HISTÓRIA:
 
Se você ainda não fez o backup dos seus dados (fotos, recados, depoimentos e participações em comunidades), não precisa sair correndo (se estiver lendo antes do dia 30) ou se desesperar (se for depois desta data). Apesar do fim do Orkut acontecer agora, será possível retirar os dados até 30 de setembro de 2016. Já as comunidades públicas serão preservadas em um “arquivo de comunidades” aberto ao público. 
 
Passo 1: Acesse a página do Google Takeout (no endereço www.google.com/settings/takeout/custom/orkut) e faça login com a conta que você usa no Orkut;
Passo 2: Clique no botão “Não selecionar nenhum” e, em seguida, selecione apenas o Orkut. Clique em “Próxima”;
Passo 3: Escolha o formato do arquivo que será gerado (.zip é o mais indicado) e o método como deseja recebê-lo. Clique em “Criar arquivo”.
Passo 4: Independentemente do método de recebimento escolhido, você pode clicar em “Fazer download” e baixar o arquivo direto da página. 
 
DEPOIMENTO:
 
“É oficial: o Orkut vai morrer dia 30 de setembro. Você nem o acessa mais, vive dizendo que ele é ultrapassado; então, por que a notícia mexeu tanto assim? A resposta é simples: porque agora é definitivo. É ponto final. É para sempre. E, assim como nos relacionamentos, isso assusta um pouquinho. É como receber a notícia que aquele seu ex vai se mudar para o exterior ou vai se casar. Significa que, mesmo nunca vendo-o nos 365 dias do ano, no dia em que você quiser um revival de uma noite só, isso não será mais possível. Ele não estará mais lá, disponível para você...
 
E, quando você vai vê-lo de novo, é meio como visitar o seu antigo quarto na casa dos seus pais, depois de anos morando sozinha, em outro lugar. Você vê as fotos superestranhas que tirava com seus amigos, no ensino médio, e sente até um pouquinho de vergonha daquele seu estilo duvidoso, ou daquele seu jeito meio infantil de escrever as coisas, diverte-se com as pilhas de recados que as pessoas deixavam naquele tempo que ter status era receber um monte de scraps, recorda os depoimentos lindos da sua melhor amiga. Que talvez hoje nem seja mais a sua melhor amiga. E as comunidades, ah, as comunidades. Quantas horas você não passou conversando e até brigando em alguns fóruns ou então olhando todas aquelas que o cara que você estava a fim era membro – e isso poderia ser uma verdadeira maratona, já que algumas pessoas tinham umas 500. Quantas vezes você não ficou puta ao saber que aquela comunidade que participava mudou de nome e agora parecia que você era uma idiota por participar dela. Quantas vezes não surtou de felicidade com outros fãs da sua cantora preferida, comentando todos os detalhes e impressões logo após o lançamento do CD ou combinando de se encontrarem no show.
 
É gostoso acessá-lo mais uma vez por causa disso. Você ri, revive, relembra. Você não vai voltar para o Orkut, não vai trocar o Facebook por ele... Mas, depois do dia 30 de setembro, vamos seguir em frente e nem lembrar daqui uma questão de poucos dias. Assim como acontecerá com o Face, daqui a algum tempo. É a logística das redes sociais. E dos relacionamentos". 
 
Trecho do depoimento de Tarsila Zamami, autora do blog “Confissões e Sincericídios”. Leia o texto completo em confissoesesincericidios.wordpress.com