ALERTA

Uma conversa necessária 

Especialistas debatem a melhor forma de educar as crianças para a prevenção do abuso

Por Jessica Almeida
Publicado em 24 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
EDUCACAO SEXUAL NA ESCOLA Foto: DENILTON DIAS / O TEMPO

Somente nas últimas semanas: o médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos foi condenado por ter abusado sexualmente de 265 atletas ao longo de décadas; 33 jogadores e ex-jogadores de futebol se mobilizaram, por meio de uma campanha do Sindicato de Atletas de São Paulo, para fazer um alerta sobre assédio e abuso sexual de crianças e adolescentes em categorias de base; a Polícia Civil de São Paulo, numa operação de combate à pedofilia, prendeu 33 pessoas acusadas do crime, principalmente pelo armazenamento e distribuição de fotografias ou vídeos de crianças ou adolescentes em cenas de sexo explícito; e, ainda que na ficção, o personagem Vinícius (Flavio Tolezani) foi julgado e condenado por ter molestado a enteada Laura (Bella Piero), na novela “O Outro Lado do Paraíso”, do horário das 21h na TV Globo.

Possivelmente, em nenhum outro momento da história o abuso sexual na infância esteve em pauta como agora. Quando a discussão, igualmente importante e difícil, sobre uma questão latente como essa emerge, as dúvidas são inúmeras. E uma das mais urgentes é: como educar as crianças para a prevenção do abuso? Como muni-las de ferramentas para que estejam preparadas para identificar e relatar, caso um adulto as moleste de alguma forma?

A nadadora Joanna Maranhão, 30, que foi abusada por um treinador aos 9 anos, acredita que, em primeiro lugar, é muito importante que os espaços de conversa estejam sendo formados. “Ao falar sobre os casos de assédio e abuso em Hollywood, a atriz Meryl Streep disse ‘abrimos uma porta pra nunca mais fechar’, eu acho que é exatamente isso. É lógico que ainda estamos buscando a melhor forma de fazer isso, mas para mim a direção é a da verbalização e do enfrentamento. Ainda vamos encontrar muita coisa que vai fazer as pessoas ficarem chocadas, mas estamos trilhando o caminho”, diz. “Ainda que seja muito duro falar – e é – hoje eu entendo que a minha fala não é mais para a minha própria cura somente, é pra evitar que aconteça com outras pessoas”.

Mesmo sabendo que aquela pessoa em quem confiava havia feito algo errado, a atleta só entendeu a questão como abuso sexual anos mais tarde, na terapia. E foi justamente a falta de conversa que criou esse bloqueio. “Sexualidade na minha casa sempre foi um tabu muito grande e isso dificultava a abordagem do assunto, por uma questão cultural mesmo, meus pais receberam essa educação e passaram pra gente”, comenta. “Hoje compreendo, estudando friamente, dentro do que me é possível ser fria diante dessa situação, que o pedófilo observa isso na hora de escolher a vítima. Não vai na criança empoderada, dona do próprio corpo”.

Ferramentas

É justamente nesse âmbito que a arteterapeuta e educadora Catarina Maruaia, criadora do projeto Se Toque – Arte e Sexualidade, trabalha. “Na infância, é importante que se trabalhe a questão da mediação e a percepção da criança em relação ao próprio corpo, buscando entender seu desenvolvimento psicossexual para compreender, por exemplo, que a investigação do corpo não é um erotismo, uma precocidade, que é normal”, explica.

A educação sexual, ela argumenta, está diretamente ligada à questão da prevenção do abuso. “O ideal é que essa conversa exista desde sempre. É fundamental ajudar a criança a identificar e conseguir se expressar no que chamamos de prevenção primária. É importante falar das partes íntimas e ensinar que o que é íntimo é de cada um, demanda cuidado e só toca quem ela deixar”, ressalta.

É preciso, Catarina acrescenta, que a criança aprenda os nomes dos órgãos sexuais e que saiba que não deve se envergonhar deles. E também que tenha compreensão do que é íntimo, do que é público e o que é privado, que existem as regras familiares e as sociais. “Ela deve saber que corpo de menina é diferente de menino e que em alguns contextos a nudez é tolerável e em outros, não”, afirma. “São pequenas ações que ajudam a criança a conseguir se expressar diante de um adulto”.

Um ponto fundamental é estabelecer de forma clara as pessoas a quem ela pode recorrer caso algo aconteça, uma vez que segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2014, 24,1% dos agressores sexuais de crianças são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. “Às vezes não estamos seguros com quem a gente confia, então é importante trazer mais de uma pessoa em quem ela confie para se abrir e em ambientes diferentes: em casa, na escola, no posto de saúde etc.”, salienta Catarina.

Não ouvir quando a criança denuncia um ato abusivo pode ser mais traumático do que o ato em si, como explica o psicólogo e psicanalista Fabiano Siqueira, que trabalhou por 6 anos com casos de abuso sexual em crianças e adolescentes. “Se ela buscou alguém para falar, parte-se do princípio que é alguém em quem confia e se a pessoa desmente, não afiança a palavra dela, é muito traumático”, explica. “Os pais precisam acolher o relato como verdadeiro. Pode ser que não seja, mas é preciso que eles acolham para averiguar”.

 

O youtube disponibiliza vários vídeos educativos para que os pais assistam juntamente com os filhos. Veja alguns

 

O vídeo da ONG Visão Mundial traz a história de uma raposa que tenta convencer crianças a estarem a sós com ela – e as deixa com medo. Muito medo. A raposa está sempre a rondar a escola. O texto enfatiza a necessidade de saber dizer não. E de dividir com pessoas de confiança as abordagens suspeitas. 

 

O vídeo, de cinco minutos, repassa, de maneira didática, mas contundente, algumas lições importantes, como a de saber dizer “não” a convites que soarem inusitados e bizarros – do tipo ver fotos de pessoas nuas no computador ou deixar alguém tocar suas partes íntimas.

 


Vídeo relata, de maneira clara e assertiva, situações nas quais o alerta vermelho deve se acender. E lembra que essas situações podem ocorrer até dentro de casa. Aconselha, ainda, que a criança pode ligar para o número 100. A produção é do Sistema Marista, junto a parceiros.

 

Instrumentos ajudam diálogo

Pais e responsáveis contam com material diverso que facilita a abordagem do assunto

Falar sobre sexualidade e prevenir o abuso não é – ou ao menos não deveria ser – uma tarefa complicada. Mas se os pais tropeçam nas dúvidas sobre a linguagem mais adequada ou sobre a melhor forma de abordar o assunto, esse não pode ser motivo para não encará-lo. Afinal material para ajudá-los na abordagem é o que não falta.
 
A escritora Renata Emrich, autora do livro “A Mão Boa e a Mão Boba”, vê nele uma proposta de começo de conversa. “Não é uma resolução, é um instrumento. É um assunto muito difícil e às vezes os pais não sabem como abordar, nem a hora de introduzi-lo e a literatura tem o poder de criar uma situação sem o ônus de um clima pesado e sem trazer um universo de medo para aquilo”, observa (confira nesta página sugestões de vídeos e livros para ajudar na conversa).
 
O envolvimento com o tema por parte de Renata se deu por conta da experiência de uma amiga, que teve a filha abusada desde bebê até os 4 anos pelo próprio pai – que já foi condenado a 45 anos de prisão em todas as instâncias, mas continua livre. Adriana* se envolveu com o tema da prevenção como uma forma de expurgar a experiência. Entre uma série de ações com que se envolveu, ela, que é professora, traz a discussão para dentro da sala. “Ao final de toda aula em que falo de prevenção, eu digo pras crianças: ‘se algum de vocês está passando por algo assim, pode falar comigo. Não no meio de todos, me procura depois, sozinho, porque isso diz respeito só a cada um’. Não foram raras as vezes em que eu fui procurada”, conta.
 
Mas não é sempre que as escolas têm abertura para essa discussão. Na verdade, o que acontece é o contrário. Renata conta que procurou muitas escolas para apresentar “A Mão Boa e a Mão Boba” e o que mais encontrou foi resistência. “Isso me assustou. A maior abertura que eu tenho para o meu livro é entre psicólogos. Falei com vários coordenadores de colégios e a maioria respondeu que só toca nesse assunto se os pais pedirem, ainda é um tabu muito grande”, diz.
 
A escola Pés no Chão, porém, vai contra essa corrente. A educação sexual lá começa muito cedo, a partir dos 3 anos. Existe, inclusive, uma disciplina dedicada ao tema no currículo: Direitos Humanos e Educação Afetivo-sexual. Nelma Silveira, diretora da instituição, reconhece que é um desafio para as escolas e educadores, mas frisa que o tema não deve ser tratado como tabu. “Não acho que a escola tenha simplesmente que jogar informação. É preciso respeitar a criança, ensinar o respeito pelo corpo, que é a morada da alma. Trabalhamos isso com os alunos desde a higiene pessoal, que é um ato afetivo, até a questão da sexualidade, que nem sempre está ligada a sexo”, afirma.
 
As discussões na escola não são feitas somente com os alunos, mas também entre os professores e com os pais. Com estes últimos, a instituição ainda encontra bastante resistência. “Quando os chamamos para os encontros, a adesão ainda é baixa. Muitos deles ainda se sentem constrangidos ao tocar no assunto, ou mesmo já foram abusados, mas nós vamos comendo pelas beiradas, falando nas reuniões gerais, porque é urgente”, diz.
 
Uma instituição que lida com milhares de crianças, o Minas Tênis Clube busca manter o diálogo aberto. Por isso o caso de abuso do médico da seleção de ginástica norte-americana não gerou transtorno entre os sócios nem pais de atletas, afirma Carlos Antonio da Rocha Azevedo, diretor geral de Esporte do clube. “Para nós é só mais um alerta para um posicionamento que mantemos permanentemente” afirma. 
 
Sinais
 
Quando uma situação de abuso sexual a uma criança ou adolescente acontece, é possível notar os sinais, como explica o psicólogo e psicanalista Fabiano Siqueira. “O comportamento muda. Se estiver numa idade escolar, pode ficar mais embotada. Ou o oposto, se for tímida, pode ficar mais sexualizada. E também afeta o rendimento. Numa casa em que não haja abertura para o diálogo, ela pode se fechar ainda mais, cobrir o corpo. E também aumentar as horas de sono, como uma forma de fuga da realidade”, enumera. 
 
Ele completa que alguém que note deve sempre denunciar. “O Conselho Tutelar é a instância local que trata do assunto. Caso a pessoa não queira se identificar, o Disque 100 é um número nacional que entra em contato com o órgão da cidade”, pontua.
 

Saiba mais

Anatomia É necessário que a criança entenda a anatomia de seu corpo e as diferenças entre os sexos, bem como as mudanças que seu corpo vai sofrer na passagem para o mundo adulto e o conceito de “partes íntimas”.

Franqueza Partes íntimas podem ter apelidos, mas a criança deve saber os nomes “reais”, como “vulva” ou “pênis”.
 
Dica A criança deve ter claro quais são as pessoas às quais pode recorrer – e é aconselhável que não sejam só da família.
 
Risco Os pais não devem obrigar os filhos a fazer carinho em quem eles não se sentem à vontade para tal, do contrário, aprenderão que a vontade do adulto prevalece sobre a sua.
 
 
Livros podem ser uma boa forma de introduzir o assunto aos pequenos. veja abaixo alguns títulos
 
FOTO: ED. ALETRIA/DIVULGAÇÃO
“Não me Toca, Seu Boboca”

 

 

(Editora Aletria, 40 págs, R$ 34)
De maneira lúdica, por meio da história da coelhinha Ritoca e outros seres do mundo animal, o livro tenta mostrar às crianças o que é a situação de violência sexual e o que fazer para evitá-la. A história se desenrola a partir de um toque indesejado de alguém da família da protagonista.
Autora Andrea Taubman. Ilustrações Thais Linhares.
 
 
FOTO: ED. RAMALHETE/DIVULGAÇÃO
“A mão boa e a mão boba”
 
(Editora Ramalhete, R$ 30)
A obra aborda o tema com vocabulário poético e didático, de modo a dotar as crianças de discernimento para distinguir as duas “mãos”, posto que ambas aparentemente oferecem “agrados” – a diferença é que a mão boba sempre pede algo em troca. E também pede segredo. Autora Renata Emrich. Ilustrações Erica Ianni 
 
 
FOTO: ED. ESCRITA FINA/DIVULGAÇÃO
"Antônio"

 

(Editora Escrita Fina, 56 páginas, R$ 27,80)
Antônio é um menino como qualquer outro de sua idade: gosta de brincar e é um devorador de HQs. Mas eis que um dia se depara com uma “mão” – que finge fazer bondades, mas transforma a vida do garoto em um pesadelo. Uma mão forte, que não o deixa correr. 
Autor Hugo Monteiro Ferreira. Ilustrações Camila Carrossine.