Entrevista

'Brasil devia priorizar a Ásia', diz Rubens Ricupero

Ex-ministro de Itamar Franco critica a política externa do governo, defende a reforma da Previdência, mas pede novas medidas na economia

Por Bruno Mateus
Publicado em 15 de abril de 2019 | 03:00
 
 

Jurista, historiador e diplomata, Rubens Ricupero notabilizou-se como um dos economistas que ajudaram a criar o plano Real, no governo do presidente Itamar Franco. Além de ter sido ministro da Fazenda, ocupou antes a função de titular do Meio Ambiente no mesmo governo. Em entrevista a O TEMPO, ele faz uma avaliação do governo de Jair Bolsonaro, do qual é crítico principalmente na política externa, defende a reforma da Previdência, mas pede novas medidas na economia. Leia a íntegra da conversa:

Na última quarta-feira (10), Jair Bolsonaro completou 100 dias na Presidência em meio a declarações polêmicas, relação estremecida com o Congresso, demissões e recuos e popularidade em queda. Esse governo já mostrou a que veio? Qual é o projeto de Bolsonaro para o Brasil?

Em primeiro lugar, acentuaria que, além da lista que você desfiou, há outros aspectos negativos, o mais importante é que o quadro da economia não mostra sinais de recuperação. Ao contrário do que se imaginava, que depois de um crescimento muito anêmico de 1% nos dois últimos anos, ela deveria ganhar maior dinamismo  este ano, com o otimismo de um novo governo, isso não ocorreu, em parte, é claro, é uma situação herdada, mas também numa parcela considerável, se deve aos erros desse governo. O governo já mostrou claramente ao que veio? Não, a não ser nesse setor que é mais claramente ideológico, que, infelizmente, está concentrado na própria pessoa do presidente e dos seus filhos. O governo Bolsonaro é muito heterogêneo, há vários núcleos. Há o Paulo Guedes com o núcleo liberal, há o Sérgio Moro, que é a extensão da Lava Jato, e há os militares de reserva, que exercem um papel moderador de contrapeso, e há os ministros que eu diria mais técnicos, que não são ministros ideológicos. É um governo heterogêneo, mas só há dois polos que possuem poder originário: um é o presidente, que tem o poder da eleição, e o outro são os militares, que, são os garantidores da ordem pública. O Bolsonaro precisa dos militares para lhe dar o mínimo de credibilidade, e os militares precisam dele, porque sem o presidente, sem a vitória eleitoral, eles não estariam no governo. O núcleo central, que é do presidente e de seus filhos, que inclui também o Ministério das Relações Exteriores, da Educação, esse núcleo é de uma visão anti-modernidade, de ultra reação a tudo que tem caracterizado a evolução humana dos últimos tempos. Sobre o projeto de país, eu acrescentaria um aspecto. Esse grupo tem uma visão de destruição e não de construção. Na visita a Washington, naquele jantar na Embaixada do Brasil em homenagem ao Olavo de Carvalho, o presidente Bolsonaro disse: ‘O Brasil não é um terreno livre onde nós vamos poder construir alguma coisa em favor do povo brasileiro. O Brasil é um terreno onde é preciso desconstruir muita coisa’. Fiquei muito impressionado com essa frase, porque creio que nós, brasileiros, pensamos no nosso país como uma obra em construção permanente. A nossa ideia sempre foi de que cada geração constrói sobre o que os outros fizeram antes. Achei estranho que talvez pela primeira vez na história nós tivéssemos um presidente que tem uma visão do seu próprio papel, como se esse papel fosse o de destruir. Vemos um governo paralisado, que se vê mais como desconstrutor que como um construtor. Bolsonaro não tem um projeto de país, tem um projeto de demolição. 

“Bolsonaro já compromete o Brasil no exterior”, disse o senhor em novembro do ano passado, semanas depois da vitória do presidente. Analisando esses 100 dias de governo, qual é a sua avaliação do governo do ponto de vista da política externa? O senhor tem criticado muito o alinhamento com os Estados Unidos.

O governo, na sua política externa, marca uma ruptura com o que se vinha fazendo antes, pelo menos desde o governo Geisel (1974-1979). Desde o fim do governo militar e ao longo de todos os governos civis que se sucederam, apesar das diferenças que havia entre eles, a política externa seguia sempre a busca de  uma crescente autonomia de decisões por meio da participação e da integração do Brasil no sistema internacional, por meio da sua atuação ativa, por exemplo, nas negociações ambientais, na participação pró-ativa nas negociações comerciais da Organização Mundial  de Comércio, pela luta do Brasil no grupo dos 20, ou nos Brics, para aumentar o poder dos países em desenvolvimento. Era esse conjunto de características que definiam a política externa brasileira. Isso tudo foi abandonado. Em lugar da autonomia, o governo Bolsonaro optou por um alinhamento não direi nem aos Estados Unidos, mas ao governo Trump. Na época de Obama, a agenda externa americana era mais próxima à política externa do Brasil. Em 2015, por exemplo, Obama reatou relações com Cuba, promoveu o acordo sobre os temas nucleares com o Irã ao lado dos europeus. Todos esses aspectos foram abandonados pelo governo Trump, e o Brasil aderiu a essa agenda. Para os Estados Unidos, a agenda internacional é formada por uma série de questões que não correspondem ao interesse nacional brasileiro. 

E como isso pode nos prejudicar? Quais são os principais equívocos?

Por exemplo, a primeira dessas questões é o esforço de conter a ascensão da China a fim de tentar evitar que em alguns poucos anos ela se transforme não só na maior economia do mundo, mas também no país líder em tecnologia de ponta, e, gradualmente, se torne a maior potência estratégica do planeta. Essa é a obsessão americana, mas isso não tem nada a ver com o interesse brasileiro, porque hostilizar a China é hostilizar o nosso maior mercado, é o país que responde por praticamente metade do superávit comercial do Brasil, é o país ao qual destinamos mais de 1/4 das nossas vendas. O segundo ponto da agenda americana é a hostilidade à Rússia por causa dos problemas da Ucrânia e da Síria. Não temos porque hostilizar a Rússia, que é parceira do Brasil nos Brics e um mercado importante. A agenda americana é de antagonismo ao Irã, que se tornou uma potência regional no Oriente Médio e se opõe aos aliados americanos na região, Israel e Arábia Saudita. Para o Brasil, isso não faz sentido, o Irã representa 7% do destino das exportações de carne bovina do Brasil, o Irã sozinho representa tanto quanto toda a União Europeia como o destino das vendas de carne do Brasil. Sobre a transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém: isso não nos interessa porque hostiliza os árabes e os muçulmanos em geral. Os países árabes somados ao Irã representam 49% das exportações de proteína animal, isto é, carne bovina e, sobretudo, carne de frango. Como se vê, nesses pontos, a política externa se distancia dos interesses nacionais para aderir a interesses americanos.

Bolsonaro propôs a Donald Trump a exploração da Amazônia em parceria com os Estados Unidos. Em outubro, o Vaticano irá promover o Sínodo da Amazônia, encontro que vai discutir políticas socioambientais para a região, e o governo brasileiro já se mostrou contrário e preocupado com algumas pautas que lá serão tratadas por considerar que são agendas de esquerda. De que maneira a causa ambiental será tratada pela gestão de Bolsonaro?

O Bolsonaro, e nesse ponto também os militares que estão com ele, reflete uma visão equivocada, atrasada, retrógrada, que era a visão do regime militar nos anos 1970. Hoje em dia, pesquisas científicas indicam que se desmatarmos 25% da Floresta Amazônica, e já estamos estamos quase em 19%, vai ocorrer uma  mudança de clima irreversível, porque a destruição da cobertura vegetal provocará uma queda das precipitações das chuvas e a paisagem vai se transformar de floresta equatorial em cerrado. Essa visão da destruição da Floresta, da construção de estradas e do aproveitamento mineral, até em terras indígenas, é uma visão do passado e que acabará por destruir as riquezas que temos na região. O caminho mais seguro para destruir isso tudo é essa visão atrasada, anti-científica de Bolsonaro e, infelizmente, dos militares, porque o general Augusto Heleno tem muitas entrevistas na mesma nota. São pessoas que desconhecem a ciência, e o conhecimento. A Igreja Católica, ao contrário, avançou muito, em contraste com esse grupo do Planalto. A Igreja tem hoje uma visão que é extremamente atualizada com a ciência, ela se preocupa com a preservação da natureza porque se preocupa com os habitantes da Amazônia, com os indígenas, com os pobres, os pescadores, agricultores, com os habitantes da região que serão afetados com a mudança climática. A visão do governo Bolsonaro é antagônica às políticas de proteção ao meio ambiente e em uma atitude às vezes de hostilidade aos direitos humanos. 

Na semana passada, Bolsonaro demitiu o segundo presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) em três meses de governo. O último deles, o embaixador Mário Vilalva, saiu dizendo que foi vítima de um golpe do chanceler Ernesto Araújo. Não é pouco tempo para muita disputa interna?

É curioso que você levante essa questão porque ela projeta luz sobre uma das incoerências do governo Bolsonaro. O presidente e seus seguidores sempre criticaram as nomeações políticas da chamada velha política. Ora, o que esse governo tem feito é repetir esse padrão. O que ouço dizer do caso da Apex é que a causa básica da saída do Mário Vilalva, que é um profissional respeitado, é que, de fato, quem dá as cartas nessa agência é o filho do presidente, Eduardo, através da diretora de negócios, que é do PSL de São Paulo, e trouxe representantes desse partido para ocupar todas as diretorias de altíssimos salários - 40, 50 mil reais. O que ouço é que são pessoas absolutamente sem qualificação, apenas devem esse posto a terem participado da campanha do Bolsonaro. 

Como o governo brasileiro tem se saído na questão da crise na Venezuela?

Na Venezuela, temos um caso tão extremo de catástrofe humanitária que não só o governo brasileiro, mas quase toda a comunidade internacional, assumiram uma posição correta, de que trata-se de um governo ditatorial. O Maduro deve sair quanto mais cedo melhor, deve haver um governo de transição que prepare eleições democráticas se possível sob o controle das Nações Unidas. Discordo da maneira como isso se encaminhou. O governo brasileiro poderia, por exemplo, ter assumido a liderança de uma pressão que fosse puramente sul-americana sem se subordinar ao governo Trump. Ao contrário, o que temos feito é seguir em tudo a liderança do governo Trump, que é suspeita. Ele nunca se preocupou com a Venezuela. Ele acordou agora porque as eleições nos Estados Unidos estão se aproximando, e ele vai precisar do estado da Flórida, que  é sempre decisivo, como foi nas duas últimas eleições. Para ganhar na Flórida, ele precisa agradar o poderoso segmento de cubanos e venezuelanos asilados, sobretudo cubanos. O Brasil está apenas seguindo nessas águas. O caminho melhor seria aquele que o general Mourão tem defendido, que os militares brasileiros mantenham abertos os canais de comunicação com os militares venezuelanos, e procurem influir para que eles retirem o apoio a Maduro. Creio que o caminho é esse, é preciso deixar o tempo convencer os militares a retirarem o apoio a Maduro, e para isso aumentar a pressão, inclusive econômica, mas não ter a ingenuidade de pensar que o reconhecimento do Juan Guaidó, ao qual sempre fui contrário, ou a tentativa de entregar ajuda alimentar à força vai resolver o problema. É preciso continuar a pressão, mas no caminho mais correto que é do Mourão, e não do chanceler Ernesto Araújo, que é uma visão ingênua e inexperiente. 

E como está a relação comercial com os vizinhos sul-americanos, sobretudo a Argentina, principal parceiro na região. É sabido que o Mercosul não é uma das prioridades do governo brasileiro.

Para todos os governos brasileiros desde há muitos anos, a Argentina sempre foi a prioridade, como deve ser. Não se pode escolher a geografia, ninguém escolhe seus vizinhos. A Argentina sempre será nosso principal vizinho e parceiro. Quando a Argentina não vai bem, o Brasil também sofre. Tanto é assim que nos primeiros meses deste ano as exportações brasileiras de automóveis e manufaturas despencaram em 40% por causa da recessão na Argentina. É um erro não atribuir a prioridade a Argentina, ao Mercosul. Estamos com uma linha de dar pouca atenção ao que devia ser a nossa prioridade. É interessante que até agora não se falou numa revitalização do Mercosul ou de um acordo do Mercosul com os países da aliança do Pacífico.

O senhor se preocupa com a influência  do escritor Olavo de Carvalho nas decisões do chanceler Ernesto Araújo, que recentemente reafirmou sua posição de que o nazismo foi um movimento de esquerda, causando constrangimento no Alemanha, onde o próprio Museu do Holocausto diz o contrário? Essas posições podem trazer problemas à política externa brasileira? 

Já está trazendo. A influência predominante na política  externa brasileira atual vem desse pensamento de extrema-direita, chamado nos Estados Unidos chamado de "franja lunática". É um grupo que está na periferia de qualquer espectro de opiniões políticas respeitáveis. Para se ter uma boa política externa, como qualquer política econômica, social ou cultural, o primeiro passo é ter um diagnóstico correto do país e do mundo, uma visão lúcida de quais são nossos interesses. Decorre dessa doutrina adotada pelo governo Bolsonaro uma distorção na visão do mundo. Segundo os partidários dessa maneira de pensar, o que caracteriza o mundo de hoje é uma ofensiva contra a chamada civilização judaico-cristão, que seria conduzida por forças obscuras, como o marxismo cultural, o globalismo promovido pelas Nações Unidas, e outras forças  mal definidas, fantasistas. Ora, isso é uma visão conspiratória da história. Quando se olha o mundo, há problemas reais, como a desigualdade crescente na distribuição de renda, a miséria tem crescido no Brasil, a ameaça do aquecimento global. A partir de 2020, as economias da Ásia, em conjunto, serão maiores que de todo o resto do mundo somado. Então começa o chamado Século Asiático. A metade dos consumidores do mundo, 4 bilhões de pessoas, estão na Ásia, e o Brasil deveria dar prioridade a essas pessoas. Em lugar disso, o Brasil é como se fosse um Dom Quixote que investe contra moinhos de vento, contra supostos perigos. Além das prioridades erradas, o que impressiona nesse governo são as omissões. É um governo que não tem no seu radar a Ásia, que é o principal continente como futuro do nosso comércio, que não se dá conta de todas essas oportunidades que o crescimento do Sudeste da Ásia, da Índia. Em 2050, vamos chegar a uma população de 11 bilhões. A divisão de população das Nações Unidas calcula que só a Índia vai representar 16% desse crescimento, e ela não aparece em nenhum documento brasileiro. Quando não se tem contato com a realidade é como um médico que, se fizer um diagnóstico errado, o paciente vai morrer. 

O senhor foi ministro da Fazenda de março a setembro de 1994, participou do núcleo que implementou o Plano Real, que completa 25 anos em julho. Como o senhor vê a gestão de Paulo Guedes? A aprovação da Reforma da Previdência é o grande teste para ele e para o governo?

Todo mundo sabe que o ministro Guedes e as pessoas que ele escolheu para os diversos órgãos têm o pensamento liberal, mas vê-se claramente que esse projeto não é o dos militares nem do Bolsonaro. O modelo de Guedes não é o modelo do Bolsonaro, que utiliza Guedes porque pensa que é o caminho mais fácil para que a economia volte a crescer e seu governo tenha êxito. Mas ele não tem convicção desse projeto. Quanto à reforma da Previdência, não há dúvida de que a reforma da Previdência é uma peça importante em qualquer recuperação das contas públicas, mas creio que a economia precisa ser reativa também por outros esforços. É preciso fazer alguma coisa sobre os impostos, que no Brasil pesam muito, são muito complexos. Temos que reduzir esse  grau de burocratização muito grande que temos, precisamos reativar o crédito para que haja mais esperança de crescimento, dar mais atenção a questão do desemprego. É preciso diversificar um pouco mais a política econômica para procurar não fazer tudo depender apenas disso, porque senão o país vai ficar suspenso durante os meses em que a votação estiver ainda por acontecer. Há duas áreas que a curto prazo poderiam ajudar a recuperar o emprego, esse problema humano mais angustiante que temos. Uma é a construção civil,  e outro é a infraestrutura. Independentemente da Previdência, o governo deveria ter gente trabalhando 24 horas por dia nesses dois setores.