Política

Fake news viralizadas por robôs afetam cálculo político

Cliques e compartilhamentos de notícias distorcem visão do eleitor sobre apoio a candidatos

Dom, 17/03/19 - 13h39
Campanha de Donald Trump foi acusada pela Justiça norte-americana de cometer crime e influenciar o sistema político | Foto: MANDEL NGAN / AFP

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Poucos meses antes de morrer, o físico Stephen Hawking disse, em novembro de 2017, que a inteligência artificial transformará todos os aspectos de nossa vidas. “Pode se mostrar a maior invenção da história da civilização ou a pior. Ainda não sabemos se seremos beneficiados ou destruídos por ela”, constatou.

O questionamento levantado por Hawking joga luz em um assunto que ganha cada vez mais relevância, sobretudo em uma era em que cliques e compartilhamentos de notícias – nem sempre reais – podem mudar os rumos de nações e transformar eleições em verdadeiras guerras digitais, quando uma enxurrada de informações podem ser propagadas não só por seres humanos, mas também por robôs – ou bots, como são chamados no mundo digital.

Trata-se de programas de computador que simulam o comportamento humano, postam e compartilham notícias e têm uma inteligência embutida, mas com limitações. 

Nas redes, eles interagem e se beneficiam dos algoritmos das redes sociais, que funcionam de acordo com as reações dos usuários. Quanto mais curtidas, comentários e compartilhamentos, mais evidência ganha a fake news.

Com a manipulação, os robôs geram uma falsa sensação de amplo apoio político a certo candidato e suas ideias. “Aprendemos por repetição. Quanto mais as pessoas recebem cópias de informações falsas, mais elas acreditam”, diz o professor do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Guido Lemos.

No Brasil, é possível comprar bots com função de impulsionanemnto automático de conteúdo a partir de R$ 40, mas os valores podem variar de acordo com o trabalho a ser realizado e chegar a R$ 1 mil. Hoje, no mercado brasileiro, estima-se que há, pelo menos, 60 empresas – a maioria em São Paulo – que atuam no segmento de desenvolvimento de bots, responsáveis pelo tráfego de cerca de 800 milhões de mensagens e interações por mês. Para se ter ideia da presença dos robôs nas redes, no Twitter, 66% dos links compartilhados são eles quem executam.

Debate

Para o advogado especializado em regulação tecnológica e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Zanatta, o dilema das fake news está longe de ter uma solução.

No Brasil, não é crime publicar ou compartilhar notícias falsas, a menos que elas configurem calúnia ou atinjam a honra de um indivíduo, de uma instituição ou de um adversário político.

Zanatta afirma que, atualmente, uma das correntes jurídicas em discussão no país é chamada de “regulação por arquitetura”, que obrigaria as empresas a modificar os códigos para tentar diminuir a propagação das notícias falsas. “O poder de fazer algo está muito mais na mão das empresas do que dos governos”, acredita.

No caso específico do uso de redes sociais e compartilhamento de informações em campanhas políticas, Zanatta diz que uma vertente que tem sido debatida é a reforma do direito eleitoral para abrir a possibilidade de um maior controle dos gastos nas campanhas, que devem ser declarados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), inclusive com um maior detalhamento das despesas com redes sociais.

Militância

Guido Lemos diz que políticos engajam militância contra ou a favor. Como os bots foram muito usados em 2018, milhões de pessoas propagaram informação falsa sem saber.

Exemplos pelo mundo

O uso de robôs para a propagação de notícias falsas tem um capítulo polêmico nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, em 2016, vencida por Donald Trump. A campanha dele foi formalmente acusada pela Justiça norte-americana de cometer crime e influenciar o sistema político do país.

Isso porque o presidente teria sido beneficiado por agências russas, que teriam espalhado notícias falsas por meio de milhares de bots para prejudicar a adversária Hillary Clinton.

Além disso, o escândalo conhecido como “Cambridge Analytica” foi noticiado em todo o mundo como ponto decisivo para a vitória de Trump. A empresa britânica teve acesso aos dados pessoais de 87 milhões de usuários do Facebook.

Com isso, a campanha de Trump conseguiu traçar perfis psicológicos dos eleitores, direcionando propagandas específicas para eles de acordo com suas crenças, ideologias e outras preferências. Tanto a Cambridge Analytica, que fechou as portas em maio de 2018, quanto o Facebook, que admitiu não ter protegido devidamente os usuários, se declararam culpados.

“A indústria dos robôs é uma consequência natural, Estamos vivendo entre eles há um tempo. Há os que ajudam o ser humano e outros que são ruins”, pondera a pesquisadora-sênior sobre desinformação e dados na Digital Harvard Kennedy School, Yasodara Córdova. Segundo ela, os robôs vão fazer parte do debate público cada vez mais, “para o bem ou para o mal”.

Os bots tiveram papel decisivo em outro processo fundamental para as relações internacionais. Na votação do Brexit, a proposta de saída do Reino Unido da União Europeia, milhares de robôs manipularam informações no Twitter para influenciar eleitores a decidirem pela não permanência no bloco europeu – o que acabou acontecendo.

Problema mais social do que tecnológico

A discussão sobre o que empresas de tecnologia podem fazer para coibir a propagação de fake news ganha cada vez mais espaço no debate público. O Facebook, por exemplo, tem parcerias com agências de checagem de fatos no Brasil e em mais 13 países.

Recentemente, o WhatsApp decidiu limitar em cinco o número de contatos para os quais uma pessoa pode encaminhar uma mensagem ou imagem. O recurso, segundo a empresa pertencente ao Facebook, foi implementado com o objetivo de reforçar o combate às fake news.

O professor do Departamento de Ciência da Computação da UFMG Wagner Meira ganhou um prêmio do Google em 2018 com o projeto “Moderando conteúdo falso e de ódio com contexto em redes sociais”. Para ele, detectar fake news é um processo subjetivo que depende, também, do contexto no qual a notícia está inserida.

“Não olhamos uma notícia individualmente, mas o conjunto, e, a partir dessa discrepância que pode surgir entre as notícias, vemos o que é divergente, quais canais estão envolvidos e as ferramentas utilizadas. Muitos sites e usuários na web são contumazes em publicar fake news”, afirma. 

Segundo o acadêmico, combater a proliferação de inverdades na rede é uma batalha árdua, que vai além de dispositivos digitais, muito importantes no processo, mas, para ele, o debate deve ir além.

“Fake news são um problema muito mais social do que tecnológico. A raiz da questão está em um misto de cultura, sociedade e hábitos. Promover educação e conhecimento é a única chance de reduzir. As pessoas são coniventes (com as fake news), lutar contra isso é o maior desafio”, afirma. 

A publicitária e pesquisadora Adriane Buarque de Hollanda diz que a chamada imprensa tradicional deve atuar como uma arma contra a desinformação. Para ela, a mídia tradicional tem de desempenhar o papel de educar e conscientizar a sociedade para que essa saiba separar o boato do fato. “A imprensa tem a função de formar a opinião pública, construir essa consciência e mostrar que é importante checar a fonte, averiguar de quem estão falando, de onde vem a informação”, conclui.

Novas estratégias

Yasodara Córdova é paranaense e mora nos Estados Unidos há quatro anos. Ela pesquisa fake news sob a perspectiva do sistema político. Segundo ela, a revolução digital em curso vai obrigar os políticos a adotarem novas estratégias e a se adaptarem a uma realidade imposta pelas redes – e sairão na frente aqueles que souberem entender esse processo. 

“Os congressistas devem debater tecnologia de um modo mais maduro, geralmente eles são muito ignorantes nessa questão. Esse é um desafio mundial. O debate que tem de ser feito não é uma pauta recorrente entre os parlamentares”, analisa. 

Para a pesquisadora, os políticos devem usar as ferramentas tecnológicas disponíveis não para difamar ou atacar adversários, mas, essencialmente, para dialogar com a população de uma maneira extremamente direta e aberta: “É uma nova forma de fazer política”, avalia Córdova. 

A publicitária, doutora em comunicação e pesquisadora do Laboratório de Cidades Criativas da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Adriane Buarque de Hollanda abordará a inteligência artificial em campanhas políticas em seu pós-doutorado. 

Para ela, a corrida presidencial de 2018 representou uma campanha de reconfiguração das mídias: “O WhatsApp, por exemplo, tornou-se um espaço muito propagado pelos bots, pela inteligência artificial. A campanha de 2018 foi a eleição das fake news no WhatsApp”, considera.

A acadêmica mapeou o pleito do ano passado, e isso servirá de base para estudar as campanhas municipais em São Paulo e no Rio de Janeiro em 2020.

Minientrevista com Arthur Igreja, especialista em inovação e redes sociais

As eleições de 2018 foram o auge das fake news no Brasil?

Com certeza, foi um momento de muito uso de fake news. Dá para ver isso pela quantidade de robôs que seguiam os candidatos no Twitter, alguns com mais de 50% de seguidores visivelmente para curtir, comentar, compartilhar e criar um movimento de manada para falar coisas positivas sobre esse próprio candidato ou prejudicar os adversários. A facada no Bolsonaro, por exemplo, gerou uma série de inverdades impressionante em uma velocidade assustadora. Até que algum jornal desmentisse, as fake news já estavam sendo compartilhadas.

Em que medida essa indústria de mentiras é prejudicial ao debate político?

A população acaba decidindo fundamentada em argumentos falsos, e esse é um grande perigo, expõe uma fragilidade da democracia ante as fake news. É muito grave. A pessoa pode estar colocando alguém no poder por influência de algoritmo, de uma notícia fabricada. As notícias falsas são escritas para chocar, para trazer o exótico. As fake news são uma peça de marketing justamente com um título que ecoa uma dessas demandas.

Fake news podem mudar o resultado de uma eleição? 

Sem sombra de dúvida. Nos Estados Unidos, o resultado das eleições presidenciais de 2016, quando Donald Trump saiu vencedor, foi, com certeza, fortemente influenciado pelas fake news. Elas podem determinar o vencedor e o perdedor.

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