Gabriel Azevedo

Carnaval sem patrulha

O direito à liberdade no contexto da folia de rua da capital

Por Da Redação
Publicado em 21 de fevereiro de 2020 | 03:00
 
 

O inciso IX do artigo 5º da Constituição brasileira é claro e não permite interpretações dúbias a respeito da garantia da liberdade de expressão dos brasileiros e estrangeiros residentes no país: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Em respeito a esse preceito constitucional, temos obrigação de combater qualquer iniciativa de cerceamento à liberdade de expressão. Foi o que fiz na semana passada, quando ocupei a tribuna da Câmara Municipal para expor meu desconforto e minha vergonha diante da moção de repúdio à Netflix e ao grupo de humor Porta dos Fundos, aprovada pelos vereadores de Belo Horizonte, com meu voto contrário.

É o que faço neste espaço, para me posicionar sobre a cartilha divulgada pelo Conselho Municipal de Igualdade Racial, com recomendações a respeito das fantasias que as pessoas não devem usar, para não “fazer piada da história e do sofrimento de grupos sociais”. Na relação, os integrantes do conselho citam como inapropriadas as fantasias de índio, cigano, religiões de matriz africana e homens vestidos de mulher.

Por mais que se tente compreender as recomendações do conselho, órgão vinculado à Prefeitura, é impossível não definir o gesto como tentativa de cerceamento da liberdade de expressão, ação para impor determinada opinião a toda a sociedade. Minha posição se baseia no texto constitucional com o qual abro este artigo.

É preciso também que se tenha em mente a essência do Carnaval, a mais livre manifestação cultural do nosso país. Carnaval é fantasia. Durante quatro dias, a pessoa pode ser o que ela deseja, é a incorporação de um personagem. Simples assim, sem nenhuma intenção de ofender ou desrespeitar este ou aquele grupo identitário.

Reconheço que o ressurgimento do Carnaval de rua em Belo Horizonte se deve aos coletivos e blocos com pautas políticas fortes. A retomada do espaço público na capital se tornou realidade a partir da mobilização dessas classes, que se caracterizam pelo combate ao racismo, à homofobia e à violência contra as mulheres. São reivindicações positivas e atuais, que norteiam o debate público.

A festa, no entanto, cresceu, e inevitavelmente atraiu um público que, mesmo que concorde com tais pautas, não necessariamente participa da folia com as mesmas prioridades. Insistir na imposição de determinados conceitos e regras é um exagero inaceitável. É autoritário e antidemocrático que haja uma patrulha do que se pode ou não usar nas ruas durante o Carnaval. E pergunto: a Banda Mole, tradicional bloco em que homens se vestem de mulher, deve deixar de existir?

O debate sobre construção democrática não se resume a exigir um governo democrático. A democracia deve permear a sociedade, sem prevalência desta ou daquela corrente ideológica. No livro “Sobre a Democracia”, John Stuart Mill afirma que “importa ainda o amparo contra a tirania da opinião e o sentimento dominante. Há um limite à legítima interferência da opinião coletiva com a independência individual”. 

No caso da cartilha de conduta para o Carnaval de Belo Horizonte, a interferência ilegítima na independência individual está plenamente caracterizada. Intolerância e desrespeito à diversidade. Ninguém se fantasia para ridicularizar e menosprezar este ou aquele segmento social. É uma simples expressão de liberdade pessoal, garantida pela Constituição e pelo bom senso. Ótimo Carnaval a todos.