Gabriel Azevedo

Gabriel Azevedo é presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte. ver.gabriel@cmbh.mg.gov.br

Opinião

Por que somos tão diferentes?

Publicado em: Sáb, 09/05/20 - 03h00
"O comportamento considerado irresponsável de parte da população é decorrente do desgaste da sua relação com os serviços públicos." | Foto: Gerd Altmann/Pixabay

A cena apoteótica da reabertura de um shopping center na cidade de Blumenau (SC), no último dia 22, é reveladora do comportamento de parte significativa dos brasileiros em relação à pandemia do Covid-19. A imagem dos clientes enfileirados, adentrando ao recinto, ao som do “Have you ever seen the rain”, criou um simulacro que contrastava com o número de infectados e de mortos pelo coronavírus.

A cena, espetacularizada nas redes sociais, gerou a sensação de normalidade, criando, por alguns dias, a ilusão de que a vida poderia ser como antes. No dia 28 de abril, ou seja, apenas seis dias após a abertura dos shoppings centers e 15 dias depois da flexibilização do isolamento social com a abertura do comércio de rua, a cidade registrava um aumento de 173% no número de notificações de Covid-19.

Resistência às autoridades

Excluindo-se os interesses políticos e econômicos presentes na cena de Blumenau, o que chama a atenção é o comportamento do brasileiro comum, aquele que, aparentemente, está isento dos condicionamentos impostos por esse ou aquele grupo ideológico, mas que simplesmente se nega a atender ao apelo das autoridades sanitárias em relação às medidas de proteção coletiva como o isolamento social, o uso de máscaras e até mesmo os cuidados com a higiene pessoal.

De acordo com uma pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto Ipsos, o Brasil é o 2º país, numa lista de 15, onde a população acredita menos na eficácia do isolamento social para reduzir o contágio pelo coronavírus. Em contraste com os países europeus, as imagens das ruas lotadas, em diferentes pontos do Brasil, revelam, entre outros aspectos, o descrédito dos brasileiros na ciência e, sobretudo, a indiferença aos apelos feitos pelas autoridades governamentais.

Diante do cenário de ascensão galopante dos casos de Covid-19 no Brasil e com vistas a refletir sobre esse tipo de comportamento, manifestado por parte considerável da população brasileira, propomos os seguintes questionamentos:

Por que em um momento de crise sanitária, os apelos do Estado brasileiro não são atendidos por boa parte da população? Por que somos tão diferentes de outras sociedades em relação à solidariedade coletiva?

Acreditamos que essas respostas não podem ser formuladas com base apenas em aspectos conjunturais, afinal os comportamentos sociais são decorrentes de amplas negociações entre os diversos atores sociais, tecidas ao longo de um processo histórico.

Assim, não cairemos na armadilha sedutora de atribuir o comportamento de indiferença ou rebeldia às autoridades, à influência do presidente Jair Bolsonaro que, nas primeiras semanas de contágio do Covid no país, minimizou os efeitos da doença e contrariou as orientações do próprio Ministério da Saúde, exibindo-se em lugares públicos e gerando consequentes aglomerações.

A despeito dos seus comportamentos reprováveis, amplificados na sociedade graças à sua liderança carismática, seria exagero responsabilizar somente o presidente pelo grande número de pessoas que não se dispõem a cumprir o isolamento social. É provável que, mesmo sem a presença de Bolsonaro no Palácio do Planalto com sua nefasta influência, essas mesmas pessoas, ou pelo menos a maior parte delas, estaria nas ruas.

Culturalismo conservador

Do mesmo modo, seria ingenuidade atribuir a totalidade desses comportamentos a uma leitura reducionista matizada pelo culturalismo conservador cujos fundamentos compreendem os brasileiros como um povo vira-latas: uma nação de mestiços amaldiçoada por suas heranças ibéricas – individualismo, pessoalismo e emotividade – traços que impediram os brasileiros de atingir o mesmo desenvolvimento social da sociedade europeia, caracterizada pelo coletivismo e pela racionalidade.

Nessa visão, a nossa alegria, espontaneidade e afetividade seriam traços comportamentais que anulariam as capacidades de autocontrole, de disciplina e de racionalidade tão caras ao esforço psicológico exigido pelo isolamento social. Não acreditamos que essa chave explicativa possa ser totalmente descartada, mas por ser demasiadamente generalista, ela não é capaz de fornecer argumentos suficientes para compreender o outro lado da moeda, ou seja, a outra parte significativa da população brasileira que aderiu de corpo e alma ao isolamento social.

Então, qual seria uma chave explicativa possível para nos auxiliar a compreender comportamentos tão dissonantes na sociedade brasileira?

Uma das possibilidades é pensar que, historicamente, a autoridade do Estado brasileiro possui diferentes gradações nos diversos estratos sociais. Em outras palavras, é como se cada classe social, ou melhor, cada fração das diferentes classes sociais respondesse de maneira distinta aos apelos do Estado.

Vale sublinhar que, em nossa concepção, classe não é uma categoria que inclui apenas variáveis econômicas, mas uma equação que envolve a renda, a escolarização e, especialmente, outras formas de aprendizagem subjetivas, inerentes à socialização familiar, que foram definidas como capital cultural pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.

Relação com a esfera pública

Assim, as diferentes maneiras de se relacionar com a esfera pública ou mesmo com o Estado estão associadas às formas com que cada fração de classe constrói sua visão de mundo, uma vez que os níveis de percepção da esfera pública e a dependência dos serviços públicos variam de acordo com cada estrato social.

Além disso, vale ressaltar que as formas de percepção sobre a Ciência e até sobre as doenças também estão em sintonia com as experiências individuais e coletivas de cada grupo. Nesse caso, os limites do alcance do conhecimento científico não são impostos apenas pela escolaridade, mas por uma constelação de variáveis sociais como a família, o território, as crenças e até as políticas públicas desenvolvidas em cada comunidade.

Grosso modo, podemos distinguir quatro grandes classes sociais no Brasil:

a ínfima elite financeira e da propriedade; a classe média; a classe trabalhadora e a classe trabalhadora marginalizada, chamada, provocativamente, de “ralé estrutural” pelo sociólogo Jessé Souza. Este segmento representa a continuidade histórica da escravidão formada por trabalhadores braçais, vendedores ambulantes e diversos outros tipos de trabalho marginalizados pela sociedade.

Cada uma dessas grandes classes possui diversos estratos, que por sua vez se relacionam de forma distinta com o Estado.

As duas classes mais desfavorecidas, ou seja, a classe trabalhadora e a ralé estrutural que representam mais de 60% da população foram historicamente abandonadas pelo Estado brasileiro. Seus direitos civis e sobretudo alguns direitos sociais básicos – saúde, educação, habitação, lazer, previdência social - nunca foram plenamente efetivados – com serviços de saúde sucateados, sistema público de educação básica ultrapassado e de baixa qualidade, políticas públicas de habitação ineficientes, que não conseguiram incluir parcelas significativas da população. Ou seja, temos um Estado ausente, ineficiente, inoperante e autoritário que relega grande da população às margens da cidadania.

Relação desgastada

Na atual crise sanitária, esse mesmo Estado apela para que a população siga os seus conselhos, assimile o seu discurso e, em última instância, cumpra as suas ordens. Assim, é possível dizer que o comportamento considerado irresponsável de parte da população é decorrente do desgaste da sua relação com os serviços públicos, aliada ao descrédito da ciência, espectro muito presente em sociedades com sistemas educacionais precários.

Somando-se a isso, é inegável que uma parcela considerável dos mais desfavorecidos não tem o privilégio de poder cumprir o isolamento em suas casas. Alguns sequer possuem residência fixa e outros só sobrevivem do subtrabalho nas ruas ou da mendicância, conformando a parcela mais visível dos subcidadãos.

Privilegiados

Quanto às duas classes privilegiadas, as elites e a classe média, existem dissonâncias muito significativas entre elas e no interior delas. Historicamente, as elites financeira e da propriedade sempre espoliaram o Estado, fosse por meio de práticas como o patrimonialismo, o clientelismo ou nas formas atuais de corrupção a atacado: saqueando os cofres do Estado ao cobrar juros extorsivos.

Vale lembrar que, na última década, o governo brasileiro abasteceu a elite financeira com mais de 40% do PIB por meio do chamado “sistema da dívida pública”. Ou seja, uma forma de corrupção legalizada, que ao contrário do Mensalão e da Lava Jato, jamais foi pautada com entusiasmo pela grande imprensa. Essa elite não costuma ter partido ou ideologia política, pois consegue corromper facilmente as instâncias do poder e manter seus privilégios ao longo de toda a história política do país.

Mas porque tratar dessa ínfima elite?

Afinal ela é inexpressiva no cômputo da população (aproximadamente 1%). A resposta é simples. Parte considerável dessa elite concentra 27,8% da renda nacional e se abastece de 38,27% do PIB do país, segundo os dados do orçamento da União de 2019.

Para se ter uma ideia, o país, no ano de 2019, gastou 3,48% do PIB com a educação e 4,21% com a saúde enquanto entregou quase 40% do PIB para essa elite. Se a metade do valor dos juros empenhados no pagamento da dívida pública fosse empregada nas áreas da saúde e da educação, provavelmente teríamos uma sociedade muito mais confiante em seu Estado e, certamente, mais atenta às informações científicas.

Classe média

Sobre o conjunto heterodoxo da população que se costuma denominar de classe média, é preciso abrir uma nota explicativa: tradicionalmente a classe média é composta por profissionais liberais, funcionários públicos, comerciantes e pequenos industriais. Assim, por se tratar de um estrato social bastante heterogêneo, ele também possui comportamentos distintos entre suas frações.

Uma parcela considerável da classe média é subletrada, assim como grande parte da classe trabalhadora. A diferença é que, no Brasil, essa fração possui níveis de dependência do Estado muito menores que os pobres.

A classe média pode acessar o sistema privado de saúde e educação, pode financiar seus imóveis pelos bancos privados de maneira que, em geral, só depende do Estado para acessar o sistema de previdência social e as universidades públicas.

Por serem as melhores do país, as universidades públicas se constituem no locus onde a classe média vai buscar a reprodução do seu status social, pois, para essa finalidade, ela depende do conhecimento considerado prestigioso que é cultivado nos espaços acadêmicos de excelência.

Assim, não é surpresa que uma parcela da classe média não se comprometa com as convocatórias emitidas pelo Estado, já que a maior parte dos precários serviços públicos não atende às suas necessidades, salvo em casos excepcionais, a exemplo de uma enorme lista de tratamentos de saúde nos quais o SUS é referência internacional.

Portanto, o resultado da histórica redistribuição desigual de recursos e serviços públicos é o descrédito do Estado por uma parte considerável dos seus cidadãos. À medida que o Estado não consegue promover a cidadania, a sociedade não reconhece a autoridade do poder público.

Ao não se reconhecer como a base desse Estado, os cidadãos se desfazem dos laços de solidariedade coletiva, essenciais para a compreensão de que o isolamento social é um ato de cuidado coletivo.

Assim, a histórica privação dos direitos sociais associada à demonização do Estado também contribuiu para que a pandemia se tornasse um fenômeno menosprezado por parte da população.

A cidadania, materializada pelos laços de solidariedade coletiva, princípio basilar do republicanismo, é vulgarmente substituída pelo consumismo individualista e hedonista. Por essas e outras, as cenas de Blumenau refletem uma parcela significativa da sociedade brasileira que não se reconhece como parte de um Estado.

  • Euclides Couto é professor da Universidade Federal de São João del-Rei.

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