Entrevista

'Mais mulheres na política significa menos homens'

A mestre em ciência política Hannah Maruci Aflalo aponta as dificuldades para as mulheres participarem da política. O desafio passa pela divisão da sociedade, a falta de apoio e de investimento dos partidos. “Colocar mais mulheres na política é mexer com o status quo que beneficia as pessoas que estão lá, sintetiza.

Por Sávio Gabriel
Publicado em 03 de agosto de 2020 | 03:00
 
 
A mestre em ciência política Hannah Maruci Aflalo Foto: Reprodução/redes sociais

“Lutar por mais mulheres na política não é uma pauta inofensiva, porque isso significa menos homens”. É assim que a mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em gênero Hannah Maruci Aflalo define a batalha por mais representatividade feminina na política. Longe de ser um debate recente, o tema vem ganhando cada vez mais destaque, mas todos os avanços conquistados até hoje, segundo a especialista, foi por força das próprias mulheres. 

Em entrevista a OTEMPO, Hannah destacou que a dificuldade para a inviabilização das candidaturas vai muito além do machismo, que embora ainda tenha um peso grande, divide essa responsabilidade com outras questões, como os aspectos institucionais dos partidos. “Colocar mais mulheres na política é mexer com o status quo que beneficia as pessoas que estão lá (nos partidos), e essas pessoas não querem que mudem”, destaca. 

A responsabilidade das legendas, segundo ela, é primordial para que as mulheres consigam lutar, de fato, em condições de igualdade aos homens. “São os partidos que fazem os candidatos, então eles têm que fazer as candidatas também”, ressalta, destacando que é preciso manter cursos permanentes de formação para as filiadas, bem como de atração de novas mulheres para as estruturas partidárias. 

Integrante do movimento Mais Mulheres na Política, a especialista defende ainda que 50% das vagas na Câmara Federal (o equivalente a 256) sejam ocupadas por mulheres. Dessas, 25% (ou 64 assentos) seriam reservados para mulheres negras. Na entrevista, ela detalha que os avanços conquistados ainda estão longe do ideal, faz críticas ao sistema de fiscalização partidária e afirma que as capitais têm uma tendência de avanço diferente em relação a localidades do interior.  

Na sua avaliação, o que pesa hoje para que candidaturas femininas não tenham a viabilidade no Brasil? 

São vários fatores e eu geralmente divido eles entre sociais e institucionais. O social tem a questão estrutural do machismo que divide os papéis do que se espera de um homem e de uma mulher na sociedade. E nesses estereótipos, as características esperadas da mulher não são consideradas boas para a política. Existe uma ideia na sociedade de que a política não é lugar para a mulher, de que a mulher não tem características que são boas para a política. Isso é o principal. Desde muito cedo, os homens são mais incentivados a falar em público, a se expor, a debater. E aí algumas características que para as mulheres são entendidas como agressivas, incisivas ou grossas, para os homens é visto como ‘ele é decidido, arrojado’, e aí ele é considerado bom para a política.

E quais são os fatores institucionais?

Historicamente, os partidos são geridos majoritariamente por homens, então a gente olha para os diretórios partidários, que é onde se tomam decisões, e 80% são homens. Hoje, no Brasil, só podemos lançar candidaturas via partidos e eles estão dominados por homens, majoritariamente brancos. Isso é um fator institucional que realmente pesa. Outra coisa que pesa é: lutar por mais mulheres na política não é uma pauta inofensiva, porque isso significa menos homens. Então a gente tem ali uma quantidade fixa de cadeiras, e se a gente está pedindo mais mulheres, mais mulheres negras, a gente está querendo dizer que alguns homens vão ter que sair; alguns que estão lá há gerações. Diria que a principal questão é a tentativa de manutenção de um status quo. Colocar mais mulheres na política é mexer com o status quo que beneficia as pessoas que estão lá e essas pessoas não querem que mudem. 

A raiz principal seria o machismo? 

Na prática, o que eu acho que é uma das coisas centrais é a forma como a sociedade é dividida. Como cuidar dos filhos e da casa recai sobre a mulher, e aí ela tem essa tripla jornada. Daí a política acaba virando sua quarta jornada, enquanto que para os homens já se entende que a mulher, no casamento heteronormativo, como extensão (do marido), vai cuidar de todo o resto para que ele possa exercer a política. Agora, quando a mulher entra (na política), na maioria das vezes ela não tem essa estrutura. Por exemplo, nos Estados Unidos, parte do financiamento público de campanha as mulheres podem utilizar para pagar pessoas para cuidarem dos filhos enquanto estão fazendo campanha. Isso entra no custo eleitoral. Aqui no Brasil não. E isso é uma coisa muito importante, porque se o cuidar dos filhos recai sobre as mulheres em sua maioria, a gente tem que considerar isso para as mulheres fazerem campanha. 


Como fiscalizar essa questão se o Brasil tivesse esse mesmo comportamento dos Estados Unidos? Haveria risco de partidos driblar essa questão?  

Quando sugiro que parte do fundo possa ser utilizado para pagar cuidado dos filhos, não é simplesmente ‘coloca aí’. Temos que pensar com calma, lógico. Como que isso pode ser fiscalizado, comprovado que esse valor está indo para isso? Mas a gente sempre vai enfrentar resistência dos partidos, a gente sempre vai enfrentar a resistência de se mexer no status quo. Isso é uma questão que não consigo te dizer se vai ser cumprida ou não. Provavelmente teria problemas, mas acho que dizer que isso pode acontecer, que esse dinheiro pode ser utilizado para cuidado com o filho é a forma de dizer que queremos mulheres na política. É a forma de dizer: o cuidado com o filho não pode ser uma desvantagem. A mulher não pode levar uma desvantagem na política por conta a divisão do público e do privado, como se o privado tivesse que recair todo para ela e se ela quiser entrar no público, ela tem que dar conta sozinha do privado. 

Qual o peso da falta de investimento nas campanhas femininas?

O dinheiro é apontado por toda a literatura da ciência política como um fator muito relevante para o sucesso eleitoral. Ele não garante o sucesso eleitoral, e ele não é suficiente, mas é importante. Uma diferença de financiamento gera uma desigualdade. Com a instituição do Fundo Público de Financiamento de Campanha, a gente tem caminhado para uma maior equalização da distribuição de recursos. E quando eu falo ‘caminhar para uma igualdade’, acho que temos que levar em conta os principais grupos demográficos, que são homens brancos e negros; mulheres brancas e negras. Temos que ter corte tanto de gênero quanto de raça. O que está em discussão agora é a distribuição proporcional à raça, e acho que isso deve ser adotado porque é forma de corrigir esse desequilíbrio.

Nas campanhas deste ano, a viabilização das campanhas femininas deve ser mais fácil ou mais difícil em relação a anos anteriores?

Acho que a cada ano está ganhando mais visibilidade a questão das mulheres. Elas estão ganhando mais força. As mulheres negras estão se organizando muito mais principalmente depois do assassinato da (ex-vereadora do Rio de Janeiro) Marielle Franco. Muitas mulheres estão mais seguras para entrar na política; acho que vai aumentar o número de candidaturas de mulheres. As mulheres estão mais informadas, sabem seus direitos e vão cobrar aos partidos. E a sociedade cada vez mais tem se aberto a essas candidaturas. Mas estou falando disso nas capitais. Se a gente vai para o interior de cada Estado, se vai para o Nordeste, ou para o interior de Minas Gerais, a situação ali continua complicada. Tenho ouvido pré-candidaturas de mulheres que relatam ameaças, que relatam várias coisas que dão nelas uma desanimada. Não podemos ser contaminados por esse espírito otimista e achar que os problemas passaram. Esses problemas são estruturais e se mantêm. 

Ou seja: existe uma certa tendência de maior viabilização das candidaturas femininas, mas isso acontece de forma mais forte nas capitais e no interior numa velocidade um pouco menor...  

Isso, porque tem muita coisa de coronelismo, de pequenas oligarquias que predominam mais nesses outros lugares. O que a gente diz é que está caminhando no sentido de viabilizar (mais candidaturas), sim, mas não é por parte dos partidos. Os partidos estão tendo que responder à pressão e responder a reivindicações, a pressão que vem das mulheres, da sociedade, para que isso caminhe. Mas é sempre muito trabalhoso. Às vezes são anos e anos de luta. E agora alguns partidos aparecem falando que são a favor da igualdade e eu quero que eles sejam mesmo. Mas não foi por livre e espontânea vontade, porque são muitos anos em que essas reivindicações vem se desenvolvendo. 

Os mecanismos de fiscalização não são tão eficientes assim, já que eles acabam, no fim das contas, não garantindo o dinheiro para as candidaturas femininas a tempo, e a punição para partidos que não garantem esses recursos vem só depois do pleito?

Não acho que seja ineficiente por ineficiência do órgão, mas realmente por uma falta de capacidade de apurar tantas coisas em relação à prestação de contas. Mas tem exceções em que o Ministério Público acompanha e aponta para chapas (irregulares). Há várias que caíram inteiras por causa de candidaturas laranja, mas é um problema grande que temos de fiscalização. Então, a gente tem as leis de incentivo: 30% das candidaturas têm que ser mulheres, 30% do financiamento público tem que ir para candidaturas femininas, só que é muito difícil fiscalizar isso. E aí, se cumprisse realmente, talvez teríamos resultados muito melhores porque a pergunta é: se a gente tem 30% de reserva de candidatura para mulheres, 30% de financiamento, por que a gente só tem 15% de mulheres eleitas no Congresso Federal? Por que temos municípios em que nenhuma mulher foi eleita? 

O que os partidos costumam dizer é que eles tentam recrutar mulheres para participar das campanhas, mas não aparecem candidatas suficientes. Como você vê essa questão?

Primeiro: essa ideia de que a mulher não se interessa por política não é verdadeira, mas a questão é que as mulheres não foram incentivadas a se elegerem. Quando olhamos para filiados de partidos, quase metade são mulheres. Elas estão ali. Por que elas não saem para se candidatar? Por que existe essa “dificuldade” que os partidos alegam? Porque a candidatura é uma construção, que é feita em grande parte pelo partido. Se o partido não forma, não cria lideranças. Chega na hora da eleição e eles querem simplesmente achar essas mulheres prontas. Sem investimento político e financeiro, essa mágica não existe. A gente tem uma política em que durante séculos os homens estão predominando e são eles que fazem política. Então, para corrigir esse desequilíbrio a gente precisa ter uma busca e investimento ativos de formação, de inserção das mulheres na política.

De que forma, na prática, os partidos poderiam investir nessa formação?  

Os partidos têm que identificar e fortalecer lideranças. Eles têm que oferecer cursos perenes, não apenas no ano eleitoral. Sempre ter formações para as mulheres filiadas, sempre ter recrutamento de mulheres. Existe uma verba do fundo partidário que é especificamente para isso, que é de 5%. Então, a gente quer ver isso na prática. São os partidos que fazem os candidatos, então eles têm que fazer as candidatas também.  

Em Minas, a representação feminina na Assembleia Legislativa de Minas é de 12,98% (dez mulheres em um universo de 77 deputados); na Câmara de Belo Horizonte, o percentual é de 9,75%, com quatro mulheres eleitas em um total de 41 parlamentares. Como você observa esse cenário?

Esse dado muito baixo está de acordo com o que temos no país todo. O próprio Congresso Federal, até 2014, tinha só 10% de mulheres, que é menos ainda do que Minas tem na Assembleia Legislativa. Faz sentido e é coerente com a política que a gente tem. Não foge à regra. 

Como fica a perspectiva de futuro em relação a esse cenário? Essas dificuldades são questões que o sistema político conseguirá equacionar em longo prazo? 

A gente está caminhando não porque os partidos estão querendo ajudar ou porque o sistema Legislativo espontaneamente se modifica para corrigir essa desigualdade. Mas temos um movimento de mulheres muito organizado, que cada vez mais está pressionando e exigindo essa participação. Se não tivesse isso, atingiríamos uma igualdade em até 200 anos, segundo estudos. Faço parte de um movimento que se chama Mais Mulheres na Política, que propõe projetos de lei que pedem a reserva de cadeiras – e não de candidaturas –, de 50% para mulheres, sendo 25% para negras. Porque entendemos que isso corresponde à composição da população brasileira, então nada mais justo do que a gente ter a mesma composição nos nossos representantes, senão eles ficam muito distantes da população e de suas demandas. Isso é uma forma de driblar todas as barreiras estruturais, sociais e institucionais. 

É possível estimar em tempo? 

Não dá para dizer em tempo porque é sempre luta, disputa política e não dá para prevermos resultados. Mas acho que a gente está caminhando sempre. Então quando se discute cota de financiamento para mulheres, cota de financiamento para pessoas negras, isso é um avanço e caminha para uma maior igualdade, mas para chegar na correspondência, que seriam os 50%, não sei dizer porque vamos lutar, vamos colocar o projeto por iniciativa popular e não dá para saber porque vai depender de como isso vai ser recebido e articulado.