Tensão

Mulheres negras e trans ganham espaço e sofrem mais ataques

Eleições entregaram resultados mais diversos, mas casos de ameaça e racismo chamam atenção

Por Marcelo da Fonseca
Publicado em 18 de janeiro de 2021 | 10:05
 
 
Para a professora Duda Salabert (PDT), que é trans, a votação histórica é resultado do trabalho que ela constrói há mais de 20 anos Foto: Facebook / Reprodução

O aumento do número de mulheres negras e de transexuais eleitas nas últimas eleições para as câmaras e prefeituras foi acompanhado dos ataques de ódio e ameaças às novas vereadoras e prefeitas que vão assumir papel de destaque na política a partir do ano que vem. Segundo levantamento do Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (GIEL/UNIRIO), do dia 15 de novembro, dia do primeiro turno da eleição, até o fim de 2020, foram 12 ataques registrados contra candidatas eleitas. 

Foi mais um ato do processo eleitoral marcado pela intolerância e que teve o preocupante registro de outros 40 casos de violência (homicídios, atentados, agressões e ameaças) contra mulheres e transsexuais. Especialistas avaliam que a violência contra esses grupos não é novidade no país, mas que os atos se tornaram mais frequentes por meio das redes sociais e em um cenário de radicalismo político. 

“Em 2020, as mulheres candidatas foram vítimas de diferentes tipos de violência, tanto no período pré-eleitoral, como na campanha e após a eleição. Os números são maiores do que os das eleições de 2018”, avalia o cientista político Felipe Borba, um dos responsáveis pela pesquisa da Unirio. 

O pesquisador ressalta que as eleições locais (para prefeitos e vereadores) são mais violentas do que as eleições estaduais e nacionais (para presidente, governadores e deputados), uma vez que envolvem maior número de candidatos e também disputas locais.

Desde as eleições, as vereadoras eleitas Duda Salabert (PDT), em Belo Horizonte, Benny Briolly (PSOL), em Niterói, Carol Dartora (PT), em Curitiba, e Ana Lúcia Martins (PT), em Joinville, além da prefeita eleita Suéllen Rosim (Patriota), em Bauru, no interior paulista, receberam mensagens com xingamentos machistas e racistas e ameaças de morte. Elas registraram as ocorrências nas delegacias e os casos estão sendo investigados por autoridades de pelo menos três Estados e também por órgãos internacionais, como a Interpol. 

Em Minas

Vereadora mais votada da capital mineira e primeira mulher trans eleita para a Câmara de BH, com mais de 37 mil votos, a professora Duda Salabert recebeu ameaças de morte em seu e-mail, inclusive com uma promessa de um atentado no seu local de trabalho. 
“Juro que vou comprar duas pistolas no Morro do Engenho aqui no Rio de Janeiro, vou esperar as aulas voltarem, vou invadir a sala de aula e matar todas as vadias, os negros e depois vou te matar”, dizia uma das mensagens enviadas à parlamentar da capital.

“É um atentado psicológico, querem silenciar minha atividade política. Mas foi também um atentado à minha profissão, já que mandaram ameaças para a escola em que eu trabalho”, disse Duda. Nesta semana, ela participou de uma reunião com representantes da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Vamos fazer uma mobilização internacional, para fortalecer a rede de proteção das vereadoras ameaçadas e também denunciar estes atentados à democracia”, diz. Ela acompanha as investigações em andamento e diz que já se sabe de qual país estão os perfis de onde partiram ataques (porém não pode revelar) e que há uma mobilização para conseguir desvendar quem são os agressores. 

Casos sempre existiram

O cientista político da Univale Manoel Assad Espíndola ressalta o histórico de violência política contra minorias no Brasil que muitas vezes não era conhecido por grande parte da população, pois as vítimas sequer denunciavam as agressões. “Esse tipo de violência existe há anos no país e os resultados estão refletidos em nossa sociedade há tempos. A intolerância e a dificuldade em conviver com a diversidade estão presentes no nosso cotidiano, assim como a violência na política. Hoje, começamos a ter mais contato com essa violência, não só porque os que sofrem passaram a denunciá-las, mas porque elas ganham mais visibilidade”, avalia Espíndola.
Segundo ele, o perfil midiatizado da sociedade faz com que as informações circulem mais rapidamente e facilita que os casos ganhem repercussão e mobilizem a sociedade. “Os diferentes grupos também passam a dialogar entre si, rompendo fronteiras que antes limitavam a voz de muitas minorias. Muitas agressões não chamavam a atenção. Há, agora, uma potência que permite a reverberação desses casos de ameaça”, afirma. Nesse aspecto, as redes sociais podem funcionar como uma forma de denunciar as agressões, inibindo os ataques. 

Para o cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Ranulfo, apesar da falta de dados históricos sobre a violência contra minorias eleitas no Brasil, a impressão é que as ameaças aumentaram. “Temos um clima de polarização na sociedade e uma certa hostilidade contra pautas que tratam da diversidade. Vemos casos de negação do racismo e pautas vinculadas às mulheres e ideologias de gêneros que está muito ligada à ascensão conservadora no país”, afirma. 

Ranulfo cita a eleição do presidente Jair Bolsonaro como o auge de um clima agressivo nas discussões. “A eleição de Bolsonaro liberou uma hostilidade, que sempre existiu no país, mas que agora ficou liberada, apontou ele.

Falta de punição preocupa

Especialistas concordam que o crescimento das redes sociais tem impacto significativo nos números de ataques e ameaças às candidatas eleitas, com muitos perfis escondendo a identidade das pessoas. A punição aos autores e o trabalho policial para “desmascarar” os agressores poderá inibir novos atos contra candidatas eleitas. Sem punições, grupos podem tentar impedir que determinados grupos ocupem espaço na política. 

“Será necessário um trabalho de controle e punição, das empresas como Facebook, Twitter e outras, mas sabemos que existem dificuldades para identificar. Acredito que entramos em uma época marcada por esse ódio nas redes”, avalia Carlos Ranulfo, da UFMG. 

Ele ressalta que cabe também às lideranças eleitas reduzir o estímulo aos discursos de ódio, uma vez que os políticos no poder servem de exemplo e norteiam os debates. “Quem ameaça quer ficar no sigilo. Estamos vendo muitas pessoas que criam coragem para falar certas coisas absurdas nas redes, que jamais falariam na vida real. Elas, de certa forma, se sentem protegidas pelas redes”, alerta Manoel Espíndola, da Univale.

No Brasil, já existe precedente de condenação por crime de racismo e coação no mundo virtual. Em 2018, Marcelo Valle Silveira Mello foi condenado a mais de 40 anos de prisão por vários crimes cometidos na internet, como atos de racismo fazendo uso do anonimato e incitação ao cometimento de crimes.