Política em Análise

A balela da intervenção militar no art. 142

Avanço da tentativa de criar, na Constituição, a possibilidade de uma intervenção militar não tem qualquer nexo com a realidade do que está na Carta Magna

Por Ricardo Corrêa
Publicado em 03 de junho de 2020 | 10:15
 
 

Nas últimas semanas aumentou a divulgação de uma tese absurda de que a Constituição Federal permitiria, no artigo 142, uma intervenção militar comandada pelo presidente da República. A tese, rejeitada por 99% dos constitucionalistas brasileiros – e encampada apenas por Ives Gandra, que nutre enorme proximidade ideológica com o governo – foi novamente levantada após o procurador geral da República, Augusto Aras, em um comentário no mínimo atrapalhado, ter citado essa hipótese. Foi necessário, inclusive, que o chefe do Ministério Público Federal (MPF) divulgasse uma nota afirmando que o que disse em entrevista na TV não era o que pensava. Claro, a Constituição Federal não autoriza, em nenhum artigo, a intervenção militar de um Poder em outro.

Aliás, a Constituição não fala em intervenção militar em nenhum artigo. De nenhuma hipótese. Tem-se apenas a figura da intervenção federal em Estados e municípios (do art. 34 em diante), por solicitação dos Poderes da União. O que nada tem a ver com intervenção militar. 

Mas e o artigo 142? Vale reproduzi-lo:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Como se vê, o artigo em questão não fala nem em intervenção nem trata de separação ou relação entre os Poderes. Versa apenas sobre o funcionamento das Forças Armadas. Inclusive nos seus parágrafos, como pode perceber quem fizer uma leitura rápida da Constituição.

Então, por qual motivo aliados do governo citam este como um texto que levanta hipótese sobre intervenção militar? Apenas pelos trechos que dizem que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do presidente e destinam-se “à garantia dos poderes constitucionais”. 

Veja como é absurda a interpretação de que isso permitiria uma intervenção. O que são os poderes constitucionais senão o cumprimento do que está na Constituição? Então, basta olhar o que está escrito nos demais artigos para ver que uma intervenção não se encaixaria na lógica de nosso arcabouço constitucional.

Vejamos o artigo 85, por exemplo, que trata dos crimes de responsabilidade do presidente. Diz este artigo que é crime de responsabilidade o ato do chefe do Executivo que atente contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”. 

Portanto, se aceitássemos a ideia de que o artigo 142 permite a intervenção militar do chefe do Executivo em outro Poder, estaríamos dizendo que a Constituição autorizaria que o presidente interferisse em outro Poder com a ajuda das Forças Armadas e que, em consequência, ele deveria ser derrubado por isso. Afinal, crime de responsabilidade leva a impeachment. Faz algum sentido? Óbvio que não.

Além do mais, ainda que o artigo 142 permitisse a intervenção, como isso poderia se dar? Tirando ministros do Supremo? Mas isso desrespeitaria o artigo 95, que trata da vitaliciedade dos juízes. E feriria os artigos sobre a composição do Supremo também. De modo que uma intervenção, ao contrariar normas da própria Constituição, nunca poderia ser tida como “garantia aos poderes constitucionais”.

Por fim, é bom dizer que a interpretação constitucional também deve levar em consideração a vontade do constituinte. O que pretendia o Constituinte quando aprovou a Constituição de 1988 após décadas de ditadura militar? Quem achar que o objetivo era preservar medidas autoritárias como a interferência do presidente no funcionamento dos demais Poderes obviamente estará usando de desonestidade intelectual. A tese de que o artigo 142 autoriza uma intervenção militar, portanto, é balela.