Política em Análise

A polêmica dos sertanejos

Episódio escancarou hipocrisia, mas é preciso não demonizar o gasto de dinheiro público com cultura no país

Por Ricardo Corrêa
Publicado em 02 de junho de 2022 | 09:59
 
 

Em um país polarizado e fortemente influenciado pelas preferências políticas, é preciso cautela para analisar a polêmica envolvendo cantores sertanejos que recebem dinheiro público em shows bancados por prefeituras. Uma coisa é a flagrante hipocrisia desses que antes criticavam colegas por causa de lei de incentivo. Outra coisa é deduzir de imediato que qualquer recurso recebido de prefeitura é mamata e que é o que banca elogios ao político A ou B. Desvios existem, precisam ser combatidos, mas não se pode demonizar a atividade cultural e seu financiamento no Brasil.

Sobre o primeiro ponto, acho que é ponto pacífico. Gusttavo Lima, Zé Neto, Sergio Reis e os demais que passaram tempos criticando os benefícios da Lei Rouanet certamente foram hipócritas de fazê-lo enquanto recebiam recursos por meios muito menos fiscalizados, como o repasse direto de prefeituras, sem licitação ou contrapartidas sociais. O escândalo atual é revelador quanto a essa postura deletéria de ataques a colegas por razões puramente ideológicas e sem qualquer coerência. Ficou muito evidente que esses não estão em posição de apontar o dedo para ninguém no meio artístico.

Daí a dizer que tais cantores são mamateiros que só elogiam o presidente pois são bem pagos para isso vai enorme distância. Seria cometer o mesmo erro que esses cometem ao tratar de artistas que foram beneficiados pela legislação incentivo. Pode valer para um e não valer para outro. Não é possível calar quem recebe dinheiro público e nem fazer uma analogia direta entre a grana que se recebe de uma prefeitura lá no interior de Minas e a preferência pelo presidente da República ou por seu adversário. Tem quem tenha sido contratado por entes federativos e seja de governo ou de oposição. Um pouco de pesquisa ajuda a perceber que esse não é o fator determinante. E tem sempre que se levar em conta que esses cantores, contratados a peso de ouro, fazem o seu trabalho. Em geral, são assim remunerados também no âmbito privado em razão de mobilizarem muito mais gente do que quem recebe menos. Entregaram o que contrataram? Houve o show? O valor é o que se cobra do mercado? É o ponto principal.

Olhando sobre outro aspecto, é prudente sempre cobrar fiscalização e se escandalizar com os desvios de verbas carimbadas que tanto acontecem em nossa sociedade. Se um dinheiro era para a educação, como parece ser o caso de Conceição do Mato Dentro, por exemplo, e foi usado em uma apresentação artística desconectada dessa finalidade, isso é motivo de apuração e, se comprovado, punição. Não tenho qualquer dúvidas de que isso acontece aos montes por todo o país, com mais de 5.000 municípios contratando milhares de shows, sem licitação - afinal é impossível comparar dois artistas e concluir qual é o melhor ou quanto vale cada um -, desvios tendem a ser frequentes. E é papel dos órgãos de controle e fiscalização garantir que o dinheiro seja sempre empregado seguindo a legalidade e a moralidade no trato com a coisa pública.

Mas também não se pode apenas fazer, de forma rasa, a crítica de que um município com problemas em saúde e educação, como quase todos no Brasil, não pode contratar um show milionário para um evento que vai mobilizar a cidade, como uma feira ou exposição agropecuária. Primeiro, pois diversão e cultura são importantes para um povo, mas também pois essas atividades por vezes geram empregos, promovem negócios, estimulam o turismo e trazem benefícios indiretos à população, seja por meio de arrecadação ou outros benefícios. Assim, como colocar dinheiro no carnaval não é jogar recurso fora, mas investir em algo que se bem feito e bem administrado pode gerar retorno.

Nessa discussão toda precisamos, em primeiro lugar, entender que estamos todos do mesmo lado e que a preocupação com o dinheiro público e com uma discussão honesta da situação é de todos e independe de ideologia. Não se pode agir tal como os cantores que tiveram escancarada sua hipocrisia, usar da mesma arma e das mesmas distorções para fazer política ou destruir o cenário cultural no país. Vale, claro, sempre, a discussão. Pode-se falar em limitação de valores cachês pagos com recursos públicos, exigência de contrapartida social, tal qual se faz com a Lei Rouanet, vedação de promoção pessoal a políticos que assinam os contratos, e por aí vai. Moralizar sem demonizar.