Ricardo Corrêa

Editor de Política de O TEMPO e escreve neste espaço diariamente

Política em Análise

A revisão da Lei do Impeachment

Publicado em: Qua, 16/03/22 - 11h32

Em meio a tantos problemas e polêmicas no país, a criação de uma comissão para revisar a chamada Lei do Impeachment ganha menos destaque do que merece. Mas é assunto absolutamente importante diante da centralidade que as discussões sobre afastamentos de presidentes ganharam no Brasil ao longo dos últimos anos, em especial desde 2013. De lá para cá, praticamente não houve período em que a bandeira da queda do chefe de Executivo não esteve presente. Qualquer que seja o eleito em outubro deste ano enfrentará, desde os primeiros meses, a pressão dos derrotados, em um país polarizado e com pouca ou quase nenhuma tolerância com que pensam e agem de forma diferente. Por isso, corrigir distorções da legislação que pode definir o futuro do país é fundamental.

Hoje, para que o impeachment vá adiante, tudo depende exclusivamente de uma pessoa: o presidente da Câmara dos Deputados. O que significa dizer que, muitas vezes, esse comandante da Câmara tem mais poder que o presidente da República. O fato de ter quase 150 pedidos de impeachment contra Bolsonaro nas mãos garante a Arthur Lira e ao seu partido um poder descomunal junto ao governo. Não é por outro motivo que o PP hoje comanda a Casa Civil, principal ministério do governo.

Aí reside um problema que precisa ser resolvido com a revisão da legislação. É aceitável que uma pessoa tome, sozinha, a decisão de dar o start em um processo tão traumático e relevante e que pode alterar o destino dos votos de milhões de brasileiros? E é razoável que nem sequer haja prazo para isso, fazendo com que o titular da Casa possa ficar por todo o seu mandato com essa arma nas mãos a ameaçar o presidente da República? Para muitos, e eu me incluo entre eles, não é.

Há várias ideias soltas hoje sobre como resolver esse problema. Uma delas é colocar essa decisão nas mãos da mesa diretora da Casa ou de mais integrantes do Congresso. A mais interessante, porém, parece ser a ideia de que deva haver um prazo para que o presidente da Câmara decida sobre os pedidos de impeachment e, uma vez decidido, haja mecanismos de recursos a essa decisão, manejados por um quórum razoável dentro da Casa Legislativa. Assim, haveria condições de um processo avançar sem o apoio do chefe da Câmara, da mesma forma que poderia haver o trancamento rápido desse processo caso a opinião favorável ao  tema por parte dele fosse isolada.

Mas uma mudança dessas não resolveria todos os problemas de uma Lei de 1950, criada em um momento completamente distinto do que vivemos hoje. Há também que se rediscutir a tipificação, exageradamente aberta, que se coloca na lei para o que se considera “crime de responsabilidade”. Veja o item 7 do artigo 9º, por exemplo. Diz que é crime de responsabilidade “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Mas o que seria isso? Hoje, qualquer coisa. Um presidente que xinga, ofende e ameaça adversários, jornalistas ou autoridades de outros países, por exemplo, não estaria agindo de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro do cargo? A pena neste caso, então, deveria ser a mesma de um presidente que desvia recursos, que dribla o orçamento, que compra votos no Congresso etc? Parece claro que a lei deve trazer tipos mais fechados e que não alarguem demais o debate.

Dentro das discussões que se iniciam no processo, há ainda temas secundários a se analisar. Entre eles está facilidade que é apresentar um processo de impeachment contra o presidente. Hoje, qualquer cidadão pode fazê-lo e não há consequências caso exagere ou crie narrativas por puro interesse político. E também há que se discutir os espaços para o direito de defesa.

Outro ponto que a comissão debater é sobre o quórum para o afastamento temporário do presidente pelo Senado. É razoável que seja necessário apenas uma maioria simples para decisão tão importante, após a abertura do processo (sem afastamento) exigir quórum qualificado na Câmara? Parece que não. Embora tenha havido um debate sobre isso no impeachment de Dilma, inclusive com uma corrida aos tribunais, foi aplicada essa regra estrita que já havia sido utilizada no impeachment de Fernando Collor de Mello, após um bom debate no Supremo Tribunal Federal (STF). Aliás, rende debate até hoje também o fatiamento do processo na reta final da votação. Por ele, Dilma perdeu o cargo mas não se tornou inelegível por oito anos, como aconteceu com Collor. Naturalmente, é outro tema sob o qual a comissão vai se debruçar, assim como os vários ritos inacabados e que foram construídos no STF nesses dois processos.

Em um país conflagrado, deixar brechas como essas da antiga lei do impeachment não é adequado. Não é por acaso que, nos debates sobre a escolha do vice nas chapas, há a real preocupação de escolher um nome que seja confiável a ponto de não manejar um processo de impeachment. Grupos de esquerda têm insistido com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) do risco de ter Geraldo Alckmin na chapa, ao que o petista tem respondido com a confiança de que ele não seria de capaz de fazer o que Michel Temer (MDB) um dia fez com Dilma Rousseff (PT). Do outro lado, Jair Bolsonaro (PL) prefere abrir mão de ter um vice político e que lhe ajude a captar votos em setores que não alcança por motivo semelhante. A provável escolha do general Braga Netto como vice tem o mesmo objetivo da ida de Hamilton Mourão ao cargo. Impedir o risco de que alguém mais articulado no Congresso consiga fazer andar um processo que possa levar à queda do presidente. O impeachment de solução passou a ameaça permanente e a sociedade precisa discutir isso.

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