Ricardo Corrêa

Editor de Política de O TEMPO e escreve neste espaço diariamente

Política em Análise

Trocar Constituição democrática é golpe

Publicado em: Qua, 28/10/20 - 12h02

É preciso dizer de cara para não abrir margem para interpretações: trocar Constituição democrática por outra quando se está no poder é golpe. Puro e simples golpe. Então, é preciso rechaçar desde já a ideia absurda apresentada pelo líder do governo, o enrolado e controverso Ricardo Barros, um integrante do Centrão que está sempre às voltas com o Judiciário, encrencado em alguma coisa.

Barros está propondo um plebiscito para saber se a população quer uma nova Constituição, baseando-se no que ocorreu no Chile. Porém, tratam-se de situações completamente diferentes. A Constituição chilena foi criada na ditadura de Pinochet. Não nasceu na democracia. Enterrá-la faz parte da consolidação democrática.

De forma completamente diferente, quer-se no Brasil derrubar a Constituição de 1988, feita em regime democrático, e que, em seu texto, previa apenas uma revisão por meio de plebiscito em 1993, o que já foi realizado. A ideia de Ricardo Barros, portanto, nada tem a ver com o caso chileno. Inspira-se em duas situações muito mais danosas à democracia: as da Venezuela e da Hungria. Isso pra ficar apenas em dois exemplos, um à esquerda e outro à direita.

Como quer Ricardo Barros, assim fez Hugo Chávez ao chegar na Venezuela em 1999. Criou uma nova Constituição, com menos amarras e que permitisse que reinasse comandando o país até sua morte. Entregou o cargo a Nicolás Maduro que reina também como um ditador, enquanto o povo passa fome e sofre com a escassez de produtos. Graças à nova Constituição, ungida pelo apoio popular, sempre circunstancial e utilizado por políticos populistas.

Da mesma forma, Viktor Orbán comanda um governo autoritário de direita na Hungria. Ao chegar ao poder em 2010, ele criou uma nova Constituição, que entrou em vigor em 2012, e que esvaziou poderes do Judiciário, ampliou os limites de ação do Executivo, mudou todo o sistema eleitoral. Assim, o partido de Orbán conseguiu perpetuar-se no poder.

É bom dizer que o líder do governo Bolsonaro não é o primeiro a tentar mudar a regra do jogo para facilitar sua vida. O mesmo fizeram os petistas, que inclusive defendiam a tese na última campanha. Fracassaram, como deve também fracassar Ricardo Barros.

A Constituição Federal tem seus próprios mecanismos para garantir que mude e evolua dentro de certos limites. Assim, pode-se alterar diversos pontos da Carta que constitui um país, mas é preciso respeitar certas cláusulas pétreas, direitos e deveres consagrados e que não podem ser alvo de ameaças por parte de governantes circunstancialmente populares. A sociedade não pode aceitar esse tipo de retrocesso. É bom enfatizar que derrubar uma Constituição democrática na democracia é muito mais fácil do que derrubar uma Constituição ditatorial em uma ditadura. Se o cidadão não tiver essa consciência agora, o arrependimento futuro não servirá para nada. Ditadura nunca mais.

 

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