Avaliação

Temer quer privatizar 'tudo que for possível', mas encontrará entraves

Para especialistas, é necessário ter crédito e criar projetos antes de colocar estatais à venda; intenção do governo interino é arrecadar entre R$ 20 bi e R$ 30 bi já em 2017

Dom, 10/07/16 - 03h00

O Brasil deve viver, a partir do próximo ano, uma nova onda de privatizações semelhante à dos anos 1990, quando grandes empresas como a Vale, então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), e as de telecomunicação saíram das mãos do governo para o controle da iniciativa privada. A proposta de privatizar “tudo o que for possível” está no documento “A Travessia Social”, lançado em maio último, que resume as propostas do PMDB para o governo federal. A ideia anima analistas e empresários, mas eles alertam que não basta ter um bom ativo para colocar à venda – é preciso também criar condições de investimento e desenvolver regras claras.

“O governo não tem condições de ser o indutor dos investimentos que o país precisa”, diz o professor de economia da faculdade IBS/FGV Flávio Correia. Ele ressalta, no entanto, que é preciso segurança jurídica e transparência na relação entre parceiros públicos.

Vice-presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) e presidente dos conselhos de Infraestrutura e Meio Ambiente da entidade, Alberto Salum tem avaliação semelhante. “Somos a favor de conceder e privatizar, mas isso leva algum tempo e demanda muito trabalho”, diz. Para Salum, o ideal seria fazer as concessões ou as privatizações já com projetos prontos e licenças concedidas, o que poderia levar cerca de dois anos.

A intenção do governo Michel Temer é arrecadar entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões com privatizações já em 2017. “Acho que o governo está muito otimista”, afirma Salum. Ele explica que não adianta vender o ativo sem dar condições para que o novo proprietário ou concessionário trabalhe. “A intenção é boa, mas não adianta ter o projeto e ficar um ano esperando uma licença ambiental”, diz. O vice-presidente da Fiemg também ressalta que, enquanto o governo for o responsável pela infraestrutura do país, é preciso investir em obras de manutenção e melhorias.

Ainda como entrave ao processo, Salum cita a dificuldade de crédito. “O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) não financia mais 100%, o crédito para as empresas não é tão fácil como há quatro ou cinco anos, e os fundos de pensão estão cheios de problemas”, enumera o empresário.

Salum acredita que o processo de privatização deve garantir a participação de empresas brasileiras nos consórcios vencedores, mas defende que o financiamento seja feito com capital estrangeiro.

Necessidade. Investimento em infraestrutura é uma necessidade gritante do país, que só deve ser resolvida com a participação da iniciativa privada. De acordo com cálculos da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), o país precisa investir R$ 987,2 bilhões em 2.045 projetos para tornar sua infraestrutura de transporte adequada.

Números

R$ 987 bi é quanto o Brasil precisa investir em transportes.

R$ 10,8 bi é o investimento previsto para o setor neste ano.

Quase tudo pode ser vendido

O governo brasileiro controla 135 estatais em diversos setores, e, de acordo com analistas, praticamente todas podem ser privatizadas. O governo já sinalizou que deve vender ou conceder as empresas de infraestrutura (rodovias, portos, aeroportos, energia) e os Correios – maior estatal em número de funcionários.

Gigantes como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal devem continuar sob o controle do Estado, mas, para o professor da Fundação Dom Cabral (FDC) Paulo Vicente dos Santos Alves, não haveria restrições em vendê-los. “No mundo, os governos costumam ter um banco de investimento, que equivale ao BNDES, e o Banco Central”, diz, referindo-se ao setor financeiro.
Além de aumentar investimentos e eficiência, ele lembra que o governo reduzirá despesas com folha de pagamento caso abra mão das estatais.

O professor da faculdade IBS/FGV Flávio Correia acredita que começar as privatizações pelo setor de infraestrutura reduz a resistência popular. “Depois, se no futuro avançar para outras áreas, o processo de aceitação seria menos traumático”, diz ele.

Petrobras. Envolvida em escândalos de corrupção que derrubaram sua cotação no mercado, a situação da Petrobras é a mais delicada. “Ou o governo vende, ou capitaliza a empresa. Se não fizer nada, ela pode quebrar na mão dele”, diz Paulo Vicente, da FGV.

Em 2008, no pico de valorização, a ação da petroleira valia R$ 40. Em janeiro deste ano, depois de sucessivos escândalos revelados pela operação Lava Jato, a cotação caiu abaixo de R$ 5. Na semana passada, variava entre R$ 9,50 e R$ 11,70, conforme o tipo de ação.

A venda da Petrobras é tida como a de maior potencial de resistência da sociedade, pelo simbolismo da empresa, fundada em 1953, fruto da campanha O Petróleo é Nosso. (APP)

Venda da Vale teve confronto

Entre 1991 e 2005, a União privatizou 41 empresas, de acordo com dados do Ministério do Planejamento. Dessas, 36 passaram para as mãos da iniciativa privada ainda na década de 1990. A venda mais polêmica foi a da Vale, na época denominada Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). O negócio desencadeou uma série de protestos pelo país, chegando a gerar um conflito entre manifestantes e polícia.

Além da Vale, outras gigantes do setor de mineração e siderurgia também forma vendidas, como a Açominas e a Acesita.

Telebras. Outra grande venda foi a do sistema Telebras, que incluía 54 empresas entre telefonia fixa – o grande negócio da época –, móvel e longa distância (Embratel).

Para o presidente da consultoria Teleco, Eduardo Tude, apesar das queixas do consumidor em relação ao serviço atual, a venda foi fundamental para desenvolver o setor. “No mundo todo, o governo nunca teve recursos suficientes para acompanhar a necessidade de investimentos do setor de telecomunicações”, diz.

Em 1998, quando o sistema Telebras foi vendido, o país tinha 20 milhões de linhas fixas e 7,4 milhões de celulares. Para conseguir um telefone fixo era preciso pagar caro e entrar na fila, e, por isso, muitas famílias alugavam a linha.

Hoje, são 43 milhões de linhas fixas e 256 milhões de celulares. Mesmo levando em conta a popularização da tecnologia nos últimos 18 anos, Tude acredita que o país não teria números tão expressivos sem a privatização, que trouxe também o fim do monopólio no setor. “O setor é muito dinâmico, e o governo trabalha sempre com falta de recursos”, diz.

Ele diz que os problemas atuais são de mercado, na relação com o consumidor, e de gestão, como o caso da Oi, maior empresa que surgiu com a venda da Telebras e que está em processo de recuperação judicial. (APP)

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