Construção social

História e cultura explicam machismo e objetificação da mulher no futebol

Episódio do último fim de semana envolvendo a zagueira Vitória Calhau e o mascote do Atlético tem raízes em toda uma construção social

Isabelly Morais| @superfcoficial
20/02/20 - 07h00

Analisar de maneira isolada a atitude machista do mascote do Atlético com a zagueira Vitória Calhau seria, no mínimo, superficial. O episódio do último domingo (16), no Mineirão, dialoga com uma série de elementos e se funde com a construção social da mulher no esporte. É possível traçar um percurso histórico-cultural para tentar compreender melhor o que sustenta esse iceberg sem apenas observar a sua ponta.

“Para as mulheres que acompanham o meu trabalho, quero dizer que essa é uma luta de todas nós e que, em hipótese alguma, podemos deixar que isso aconteça e fique por isso mesmo. Temos que ter consciência que devemos ser respeitadas em qualquer ambiente”, desabafa Calhau ao Super FC.

“Essa situação do Atlético de certa maneira reproduz uma ideia que a presença das mulheres no futebol é mais valorizada pelos aspectos estéticos do que pela presença delas por seus aspectos técnicos, táticos, suas conquistas e história na modalidade. Essa ideia da objetificação e da sexualização, que é muito comum no campo do futebol, mostra esse olhar sobre as mulheres”, considera Silvana Goellner, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das referências na temática mulher e futebol no Brasil.

A presença da mulher no ambiente esportivo caminhou por diversas nuances ao longo do tempo. Uma linha de estudos fundamentada pela própria pesquisadora Silvana Goellner traça dois olhares recentes que enviesam a presença das mulheres no esporte: uma fragilidade do perfil feminino e a erotização dos corpos.

Mulher como um ser frágil

Idealizador e fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna, Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin, foi importante para a ideia de um megaevento esportivo que englobasse o mundo inteiro. Mais do que isso, que fosse possível unir povos distintos, mesmo que na disputa e na competição por meio do esporte. Um dos responsáveis por idealizar uma integração entre países e culturas diferentes, Barão de Coubertin deixou as mulheres nas margens.

Muito pela cultura da época – fim do século XIX – ele creditava à mulher um papel coadjuvante em relação ao esporte, considerando que mães e esposas poderiam ser boas companheiras para os homens competidores. Ainda, que mães fortes poderiam gerar corpos fortes, sendo as mulheres templos de reprodução. Ao considerar o esporte um espaço de honras, Coubertin acreditava que a presença da mulher poderia vulgarizá-lo.

A ideia do pai dos Jogos Olímpicos modernos não se restringia aos pensamentos do francês, tampouco ao contexto no qual estava inserido. No Brasil, um decreto-lei na década de 40 proibiu a prática de algumas modalidades por mulheres, como futebol, algumas lutas, salto com vara, salto triplo e pentatlo.

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, trazia o decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, art. 54. O decreto instituiu o Conselho Nacional de Desportos para “orientar, fiscalizar e incentivar” a prática esportiva no país.

Esporte considerado viril e muito atrelado aos homens, o futebol passou a ser visto como algo que poderia atingir o que se entendia como a fragilidade do corpo feminino. Apesar da proibição, muitas mulheres continuavam jogando com a desculpa que era apenas uma atividade, e não prática da modalidade. Enquanto elas tentavam driblar a decisão retrógrada por aqui, fora do Brasil o futebol feminino ia dando os seus passos.

A queda da proibição veio só em 1979, quando o futebol feminino enfim ficou livre para correr contra o tempo pelo seu desenvolvimento. O time que ficou mais conhecido logo após a revogação do decreto-lei foi o Radar, que saiu das praias do Rio de Janeiro para até representar a Seleção Brasileira. Da década de 80 em diante, foi possível ver a primeira geração de futebol feminino no país que jogava dentro da lei. 

Erotização e objetificação dos corpos

A partir desse momento, ganha força um novo olhar sobre o futebol feminino: a erotização dos corpos, tanto quando a objetificação das atletas. Em 2001, para se ter noção, o projeto do Campeonato Paulista feminino levava em consideração os aspectos físicos das jogadoras como critérios fundamentais para um torneio ‘bonito’.

"Desenvolver ações que enalteçam a beleza e a sensualidade da jogadora para atrair o público masculino", continha o projeto do campeonato daquele ano, elaborado pela Federação Paulista de Futebol (FPF) em parceria com a Pelé Sports & Marketing, documento ao qual teve acesso o jornal Folha de São Paulo em 2001.

O presidente da FPF na época, Eduardo José Farah, chegou a reafirmar esse ponto no evento de lançamento da competição.

"Temos que mostrar uma nova roupagem no futebol feminino, que está reprimido por causa do machismo. Temos que tentar unir a imagem do futebol à feminilidade", chegou a comentar. "Vamos ter um campeonato tecnicamente bom e bonito”, completou.

De drible em drible, a modalidade no país foi constituindo o seu mercado. Atualmente, o cenário do futebol feminino no Brasil é bem melhor que de anos anteriores, apesar de ser uma caminhada ainda bastante longa. Tão longa que registramos o lamentável comportamento do mascote do Galo no último fim de semana.

“Devemos sempre rebater situações como essa porque elas não podem ser naturalizadas, tipo ser uma brincadeira, um equívoco ou uma atitude individual. Não é isso que está colocado. O fato de ele ter liberdade para fazer o que fez demonstra que essa é uma situação possível de ser feita. A naturalização da objetificação do corpo das mulheres precisa ser desconstruída, e uma forma de fazer isso é chamar a atenção que aquele gesto expressa um olhar sobre as mulheres de subvalorização do que elas são”, pontua Silvana.

Casos do Atlético

O episódio com o mascote do Atlético repercutiu em todo o país. Na apresentação do elenco feminino do clube à torcida, o Galo Doido cumprimentou a zagueira Vitória Calhau, deu uma ‘voltinha’ com a jogadora e saiu esfregando as mãos em sinal de que tinha gostado do que viu. Um completo sinal de desrespeito à figura da jogadora e ao time. 

“Na hora da apresentação, eu não percebi o que ele fez. Pra mim, ele me fez dar uma volta pra ver meu número, que é 13, e 13 é Galo. Quando cheguei em casa que recebi mensagens de familiares e só aí fui entender o que estava acontecendo. Eu me senti ofendida e envergonhada”, diz Calhau à reportagem.

Em nota, o Atlético informou que “lamenta e repudia o comportamento do funcionário, que foi sumariamente afastado”. Ainda, pediu “desculpas à atleta, às demais jogadoras e a todas as torcedoras e torcedores pelo lamentável ato”. Questionado pelo SuperFC se vai tomar alguma atitude além da nota oficial, o clube informou que medidas administrativas serão tomadas de maneira interna.

“Tem-se uma dificuldade no tratamento dessas mulheres como atletas. Muito em parte porque é algo relativamente novo para esses gestores. São pessoas que aparentemente não estão acostumadas a lidar com questões relacionadas ao universo das mulheres no trabalho”, avalia Marina de Mattos Dantas, psicóloga, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFut), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Recentemente, o Atlético se envolveu em outra polêmica. Algumas atletas profissionais do clube foram gandulas em um jogo do time masculino no Campeonato Mineiro, o que voltou a acontecer em partidas seguintes. Segundo a instituição, a oportunidade foi oferecida às jogadoras assim como ocorre com o Sub-20 do masculino. Em cada jogo, o valor recebido foi de R$ 90 reais, o que o Galo entende como um valor para complementar a renda das atletas.

Em 2017, enquanto defendia a camisa do Atlético, o atacante Robinho foi condenado a nove anos de prisão pela justiça italiana pelo estupro coletivo de uma jovem albanesa. O crime aconteceu em 22 de janeiro de 2013, em uma casa noturna de Milão, quando o atleta defendia o Milan (ITA). Na época da condenação, o Atlético se posicionou dizendo, apenas, que era “um assunto pessoal do atleta”. 

“Temos um histórico de uma educação que é machista. A questão não pode ser uma pessoa só que comete um ato machista e ser afastada. Precisamos também pensar que funcionário é esse, porque por exemplo, o Robinho foi condenado por estupro em primeira instância e não foi afastado. Então quando o funcionário é o Galo Doido ele pode ser afastado porque em teoria está ocupando um lugar hierárquico na instituição de menos poder que um jogador. São os limites entre a responsabilização e a culpabilização de um indivíduo só, por um problema que é social. A instituição também tem sua responsabilidade”, analisa Marina Dantas.

Em 2016, o Atlético também esteve no radar das críticas. No lançamento do uniforme para a temporada com a DryWorld, fornecedora de material esportivo, algumas mulheres desfilaram usando apenas uma peça do uniforme: camisa ou calça. Como o momento era de mostrar o novo uniforme do clube, o Atlético foi bastante criticado por uma ação machista e sexista ao lado da empresa canadense de equipamentos desportivos.

Na ocasião, apesar de uma repercussão gigante, o clube se posicionou via assessoria informando que achava a polêmica desnecessária por sempre ter respeitado as mulheres. De nota em nota, o Atlético vai dando seus posicionamentos, mas boa parte da torcida pede mais que alguns caracteres preenchidos.

“O Atlético tem apenas reagido aos eventos acontecidos com notas vazias, que tentam apenas amenizar a negativa imagem do clube veiculada nacionalmente em mais um caso de machismo, de racismo ou homofobia. É preciso que o clube comece a pensar mais no seu papel social e busque agir de maneira preventiva, propondo a discussão a fim de sensibilizar a torcida. A instituição é sempre quem vai guiar os torcedores em uma melhora de comportamento, é o compromisso social do clube”, pondera a Grupa, coletivo de torcedoras atleticanas.

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