Nagorno-Karabakh

Armênios se rendem e dissolvem governo autônomo no Azerbaijão

A autoproclamada República de Artsakh, nome armênio do enclave, deixará de existir em 2024

Por Agências
Publicado em 28 de setembro de 2023 | 21:33
 
 
 
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Após 32 anos de disputas que gestaram duas guerras e milhares de mortos, o governo autônomo armênio de Nagorno-Karabakh capitulou ante a ofensiva militar do Azerbaijão e anunciou sua dissolução. A autoproclamada República de Artsakh, nome armênio do enclave, deixará de existir em 2024.

O presidente da região, Samvel Saharamanyan, assinou um decreto nesta quinta (28) extinguindo todas as instituições locais no próximo dia 1º de janeiro. Enquanto isso, mais de 60% da população local de 120 mil pessoas já fugiu pela sinuosa estrada de montanha que liga o território à Armênia.
Lideranças locais e o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, acusam Baku, que tomou o controle da região em uma ofensiva militar relâmpago de 24 horas na semana passada, de promover uma limpeza étnica.

Segundo o governo em Ierevan, até esta quinta 75,5 mil refugiados haviam cruzado a fronteira. Um deles, Hayk, contou por mensagem de texto que ele e sua família foram bem recebidos na terça (26) em Goris, na Armênia, por uma equipe da Cruz Vermelha.

"Eles nos deram comida e checaram se tínhamos roupas adequadas. Não precisamos de acomodação porque temos parentes aqui, em Ierevan e Gyumri, mas não sei para onde irão muitas dessas outras pessoas", afirmou à Folha de S.Paulo o engenheiro de 43 anos, que pediu para não ter o sobrenome revelado.

"Esse é um ato direto de limpeza étnica, algo que nós vínhamos alertando a comunidade internacional havia muito tempo", afirmou Pashinyan em uma reunião governamental nesta quinta. Ele voltou a pedir que potências estrangeiras tomem "ações concretas contra o Azerbaijão".

Suas palavras tendem a cair no vazio. A Rússia, tradicional tutora militar da Armênia, mudou de posição aparentemente para promover uma acomodação com a Turquia, seu misto de aliada e rival que patrocina militarmente o governo em Baku.

Vladimir Putin já tinha uma relação conflituosa com Pashinyan, que tentou se aproximar do Ocidente. Os Estados Unidos e a União Europeia publicamente o apoiam e falam em rever a relação com o Azerbaijão, mas dificilmente algo acontecerá na prática. No caso europeu, principalmente, há o peso da compra de gás do país do mar Cáspio em jogo.

O premiê armênio, por fim, enfrenta críticas dos próprios líderes de Nagorno-Karabakh e protestos em casa. Ele depende da Rússia, com quem dobrou o fluxo comercial após o início da Guerra da Ucrânia em 2022. Politicamente, é acusado de não proteger seu povo numa região ainda marcada pelo genocídio armênio pelos otomanos em 1915, algo que a Turquia, herdeira do império, não reconhece.

A arquitetura de poder na região sofre, assim, o maior abalo desde a década de 1820. A Rússia czarista havia tomado o controle do Sul do Cáucaso das mãos da dinastia Qajar na Pérsia (atual Irã) ao fim da última Guerra Russo-Persa.

O caos decorrente da Revolução Russa de 1917 e da guerra civil subsequente dissolveram a organização local, com azeris, armênios e georgianos lutando por autonomia. A vitória militar dos bolcheviques acabou dando o desenho definitivo na região em 1921, com fronteiras arbitrárias e bolsões de grupos étnicos isolados das populações maiores.

Era o caso de Nagorno-Karabakh, incrustado no Azerbaijão, e de Nakhchivan, exclave azeri entre Armênia, Turquia e Irã que agora vira um novo foco potencial de tensão. Tanto o autocrata azeri Ilham Aliyev quanto seu protetor, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, já disseram ser vital ligar a região por terra ao Azerbaijão.

O arranjo comunista durou 70 anos na região, mas as tensões nacionalistas já haviam desembocado em conflitos no ocaso da União Soviética, durante a liberalização proposta por seu último líder, Mikhail Gorbatchov (1931-2022). Quando as 15 repúblicas se separaram de vez, em 1991, a disputa virou guerra.

O primeiro conflito durou de 1992 a 1994 com vitória armênia, melhor equipada e já sob a proteção militar de Moscou, que tem no país sua maior base no exterior. Áreas em torno de Nagorno-Karabakh foram desabitadas na prática, com moradores expulsos para Baku, criando um tampão protegendo o território e o ligando à Armênia.

A autoproclamada República de Artsakh não era reconhecida senão por outras três regiões disputadas controladas na prática por Moscou: a Transdnístria, encrave pró-Kremlin em Moldova, e a dupla Ossétia do Norte e Abakházia, tomadas na prática pela Rússia na guerra de 2008 contra a Geórgia.

Em 2020, com a ascensão turca na região transmutada em apoio militar direto, com os famosos drones Bayraktar-TB2 e outros equipamentos, os azeris lançaram uma guerra de 44 dias que reconquistou as regiões.
Putin interveio e mediou um cessar-fogo com uma força de paz russa como garantidora. Era um arranjo frágil, até porque as atenções do Kremlin já se viravam para o processo que desaguou na invasão da Ucrânia.

A nova realidade geopolítica levou lentamente à preparação da tomada militar de Baku do território. Ela ocorreu em 24 horas, na última segunda (18), sem interferência dos 2.000 soldados russos na região - eles deverão ir embora ao fim da retirada dos armênios, mas isso não está certo.
Salvo alguma reviravolta, foi o fim de três décadas de turbulência, e o começo de mais um capítulo de desterro na região.

Aliyev até prometeu criar "um paraíso" no território, mas os armênios étnicos não compraram a ideia, algo sensato dado o histórico regional. Um importante líder local, o bilionário banqueiro Ruben Vardanyan, foi preso na quarta (27) e acusado nesta quinta de financiar o terrorismo por Baku.
Nesta quinta, o embaixador azeri em Londres, Elin Suleymanov, afirmou à agência Reuters que "o Azerbaijão não quer um êxodo em massa e não está encorajando ninguém a sair da região liberada".

As implicações dessa reorganização ainda não são totalmente conhecidas, a começar pelos termos do arranjo entre Putin e Erdogan, no qual o russo certamente buscou garantir alguma estabilidade no seu flanco sul, dada a concentração de esforços na Ucrânia.

Mas há outros fatores, que passam pelo destino de Nakhchivan. "Os iranianos agora enfrentam um Azerbaijão hostil e reforçado", escreveu nesta quinta o analista Kamran Bokhari, da consultoria americana Geopolitical Futures. "Mais importante, os turcos agora têm influência sobre o flanco norte do Irã, algo que nem os otomanos conseguiram contra os rivais persas", disse.

O autocrático Erdogan, com efeito, é o maior vencedor desse processo, empoderando sua posição na aliança militar ocidental, a Otan, rival do mesmo Putin com quem combina a nova divisão do Cáucaso. (IGOR GIELOW/FOLHAPRESS)

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