Ebulição social

Economia fraca, desigualdade e corrupção impulsionam protestos latinos

Para estudiosos, a desvalorização das commodities é vetor para série de manifestações; Historicamente, América Latina reage com mudança às crises globais

Por Alex Bessas
Publicado em 27 de outubro de 2019 | 03:00
 
 
 
normal

Há algo de febril na primavera latino-americana. Por mais de uma semana, manifestantes chilenos ocupam as ruas em violentos protestos que não se curvam à repressão policial. Antes, era o Equador a arder com atos que chegaram a provocar uma mudança provisória da capital. No Peru, está instalada uma crise institucional e, na Venezuela, o horizonte é de uma complicada situação econômica e democrática.

A temperatura também é alta na Bolívia desde as eleições do último fim de semana, que ainda reverberam e geram conflitos. Na Argentina e no Uruguai, onde já se percebe certa excitação, o povo vai às urnas hoje – o que pode funcionar como uma fagulha em um barril de pólvora. No Brasil, autoridades demonstram preocupação e se dizem preparadas para o caso de essa onda atingir o país.

Diante do evidente retrato de uma América Latina convulsionada, “é, ainda, difícil encontrar uma explicação geral”, examina o professor do departamento de Ciência Política da UFMG Carlos Ranulfo. Para o estudioso, os levantes têm motivações parecidas em algumas nações. Chile, Equador e Argentina, por exemplo, têm em comum o componente dos ajustes fiscais, ligados a uma política neoliberal. Impopulares, o aumento de tarifas e o corte de subsídios culminaram em atos de rebeldia. Já na Bolívia e no Peru, a situação tem a ver com os processos eleitorais e composições políticas.

Postas as diferenças, Ranulfo acredita que há, sim, elementos mais abrangentes, que dão liga à simultânea ebulição social na região. “O plano de fundo é o descontentamento da sociedade civil com os governos, o questionamento da representatividade e a sensação de que a política não tem conseguido entregar a possibilidade de uma melhora de vida”, analisa.

A ponderação converge com o diagnóstico oferecido por Vinícius Vieira, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Costumamos pensar que protestos decorrem de uma situação extrema, uma situação de fome, por exemplo. No entanto, muitas vezes, as manifestações surgem de uma falta de perspectiva. É nesse sentido que devem ser entendidos protestos na Argentina, no Equador e no Chile”, examina ele, situando que o cenário é semelhante ao atravessado pelo Brasil, em 2013: “O que vimos nas ruas e o que vemos agora é uma classe média que se vê estagnada ou que está encolhendo”.

De maneira mais amplificada, Vieira localiza na desvalorização das commodities o principal vetor para essas mobilizações. “Com a desaceleração do crescimento da China, todos os países latinos sofrem com a perda de valor de seus principais produtos – que estavam em alta pelo menos entre 2004 e 2014”, diz. “É o caso do Chile, que vê o cobre perdendo valor de mercado”, completa Vieira.

Associam-se à questão econômica, acentuando a fúria popular, a sensação de corrupção e a percepção de aumento da desigualdade social, diz o estudioso. O doutor em relações internacionais é enfático: “O que temos hoje é uma abertura para anos de instabilidade até que um novo consenso seja atingido. Estamos longe de ter fechada essa janela de grandes transformações”.

Sem crescimento econômico, atos podem chegar ao Brasil

Se o presidente Jair Bolsonaro já se antecipou e indicou preocupação de que a onda de protestos atinja também o Brasil, garantindo que o Exército estará pronto para ir às ruas, analistas, de fato, não descartam essa possibilidade. “Se o governo não entregar crescimento, e isso não chegar ao bolso do povo, há risco de protestos nos próximos meses”, diz Vieira. 

Todavia, ele lembra que o atual mandatário está começando o governo e ainda tem capital político. Além disso, a população brasileira vem, há pelo menos cinco anos, de uma rotina de manifestações, o que pode levar a um certo cansaço. Há ainda o risco de grupos radicalizados, que não reconhecem instituições democráticas, se aglutinarem.

Sensíveis às mudanças econômicas

O retrato de uma América Latina em transe não é uma novidade, garante o professor Vinícius Vieira. “É algo cíclico. Há 90 anos, por exemplo, houve a Grande Depressão, que impactou todo o mundo e provocou um realinhamento de países latinos”, observa.

“No Brasil, saímos de uma economia primária para algo mais industrializado. É assim que Getúlio Vargas chega ao poder com a Revolução de 30”, elabora, considerando que o momento também levou à ascensão dos peronistas, na Argentina, e, no Chile, deu força aos centristas.

“Quando há transformação na economia mundial, a tendência é que países que exportam commodities sofram, não só consequências econômicas, como também, políticas. Estes são períodos de grandes mudanças sociais”, sinaliza. 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!