Leice Maria Garcia é presidente do Observatório Social de Belo Horizonte, auditora federal de Finanças e Controle
A derrubada do decreto do IOF pelo Congresso colocou Executivo e Legislativo em novo cenário. Sem espaço para a tradicional barganha, o governo mudou: passou a relacionar o perfil conservador e extremista do Congresso com a defesa dos interesses do 0,1% mais rico – aqueles com ganhos acima de R$ 50 mil mensais – e dos que lutam pela manutenção de privilégios, como os detentores de supersalários.
A resposta veio rápida: editoriais da grande imprensa e declarações de suposta “polarização social”. Reagir a essas respostas exige ir além da ideia de confronto entre extremistas para enxergar o embate político como essencial ao avanço democrático. Três possibilidades emergem neste contexto.
1. Retomada do sentido histórico de esquerda e direita
A configuração atual da disputa entre esquerda e direita remonta à Revolução Francesa: girondinos, representantes da elite econômica, sentavam-se à direita da assembleia; jacobinos, ligados à burguesia média e popular, à esquerda. Com o tempo, os sentidos se expandiram, mas a essência permanece: trata-se de projetos distintos de sociedade, com a direita priorizando liberdade de mercado e propriedade, e a esquerda, igualdade e avanços sociais.
O embate entre Executivo e Legislativo pode recuperar a distinção fundamental, ocultada por discursos difusos, alianças incoerentes e pela extrema direita que se veste de “nova política” e ataca os fundamentos da democracia.
2. Desmascaramento da manipulação simbólica
Expor o Congresso atual é útil, mas é preciso ir além e perguntar por que mesmo uma população majoritariamente pobre votou na direita e na extrema direita. Um fator importante é que grupos dominantes controlam os meios de comunicação e, com eles, influenciam a percepção coletiva. Como resultado, no Brasil, dois estereótipos foram disseminados com eficácia: a direita busca liberdade; a esquerda, autoritarismo.
Essa falsa dicotomia é utilizada, especialmente, pela extrema direita para desmontar direitos e desacreditar a política. Assim, a atual tensão tem caráter pedagógico, ao desnudar algumas práticas. Revela conflitos reais de interesses e desafia a sociedade a reconhecer que, muitas vezes, vota contra si mesma e que deve reverter essa realidade.
3. Do impasse à reconstrução
Essa compreensão exige admitir que o país tem dois projetos distintos: o do Executivo de centro-esquerda e o do Legislativo conservador, com presença significativa de forças antidemocráticas.
A governabilidade, antes mantida por práticas ilegítimas – mensalão, “orçamento secreto”, emendas Pix –, dá sinais de esgotamento. Fortalecido, o Congresso aposta no impasse. Mas, como Ícaro, pode cair pela arrogância. Já o Executivo, para renascer como fênix, precisa abandonar a conciliação a qualquer custo e apostar na mudança.
Essa virada pode ser transformadora: 90% da população ganha menos de R$ 8.000. Se direita e esquerda forem capazes de dialogar com a maioria, talvez seja possível enfrentar o extremismo e construir, com a sociedade, uma nova configuração democrática. Será?