Ao pintar o afresco “A Expulsão de Heliodoro”, entre os anos 1511 e 1512, no aposento Stanza d’Eliodoro, no Vaticano, Rafael Sanzio não pretendia apenas retratar a passagem homônima narrada no segundo livro dos Macabeus – o texto bíblico diz que, por ordem de Seleuco, rei da Ásia, o intendente Heliodoro foi mandado ao Templo de Jerusalém para confiscar o dinheiro que lá havia; no entanto, atendendo as súplicas do povo, Deus enviou um cavaleiro, que expulsou Heliodoro do local. O pintor renascentista, no entanto, queria legitimar as constantes guerras promovidas pela Igreja Católica em prol de um “motivo santo”. Essa intenção fica evidente quando se observa o lado esquerdo do afresco, onde o papa Júlio II é retratado observando a cena da expulsão.
A atitude de Rafael, portanto, foi a de distorcer a realidade em benefício próprio e de terceiros – que, no caso era a Igreja, financiadora de seus serviços. Esse tipo de conduta tem registros datados muito anteriores à época do pintor. Na Espanha do século IX, por exemplo, durante a Reconquista Cristã – guerra travada, principalmente, entre a Espanha e os povos árabes –, floresceu uma enorme devoção a “Santiago Matamoros”.
A veneração surgiu por meio do rei hispânico Ramiro I, que, à época dos conflitos, espalhou o boato de que são Tiago Maior, apóstolo de Jesus, havia aparecido a ele em sonho dizendo que estaria presente em vários combates montado em um cavalo branco para aniquilar os inimigos (por isso o nome “mata-mouros”).
Ainda que as chances de isso realmente ter acontecido sejam bem próximas de zero, os hispânicos acreditaram e se encarregaram de espalhar o boato de geração em geração, de modo que a história de “Santiago Matamoros”, que mescla lenda e realidade, exerceu grande influência na formação da identidade nacional espanhola. E o infame título de “Matamoros” foi por muito tempo evocado pelos católicos para tratar são Tiago.
Os casos relatados são apenas dois exemplos de como a distorção de um fato pode ter imensa amplitude e reverberar por muito tempo, principalmente se forem oriundos de pessoas que exercem grande influência na sociedade. À vista disso, com a chegada de um ano eleitoral que promete manter forte polarização entre os brasileiros e contar com uma saraivada de fake news na internet, torna-se necessário atentar-se – mais uma vez – para o cuidado com a desinformação.
É bem provável que vamos nos deparar novamente com publicações que distorcem dados e fatos no intuito de beneficiar algum candidato especificamente. A exemplo de 2018, deveremos ter que lidar com líderes religiosos lançando mão de malabarismos retóricos a fim de alinhar discurso de ódio à Bíblia, socialistas tentando defender o livre mercado e políticos inescrupulosos desdizendo o que haviam dito antes.
Nesse contexto, os bibliotecários, assim como outros profissionais da informação e da comunicação, têm o dever de promover fontes de informações oficiais e confiáveis para combater as notícias falsas e reforçar seu papel de disseminador do conhecimento validado.
Fake news constituem crime previsto na legislação penal. Por isso, cabe a esses profissionais encabeçar campanhas contra a desinformação para que seu público tenha acesso a materiais de qualidade, tanto na internet quanto impressos, além de contribuir para o esclarecimento da sociedade como um todo.
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