Sempre há um jeito poético e ao mesmo tempo reflexivo, consciente e responsável de pensar sobre as nossas relações com o consumo e as marcas em tempos de epidemia e isolamento social.

Ou isto ou aquilo é um poema bonitinho da Cecília Meireles, mas também um jeito tipicamente moderno de criar oposições. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…

Ou se tem saúde e não se tem dinheiro ou se tem dinheiro e não se tem saúde. Ou se é desenvolvimentista ou se preserva o meio ambiente. Ou priorizamos os negócios ou cuidamos das pessoas. Ou guardo dinheiro e não compro o doce ou compro o doce e não guardo o dinheiro.

Na propaganda nunca foi muito diferente. Ou atendo à voracidade do lucro de grandes ou muitas empresas, estimulando a produção e o consumo desenfreados, ou procuro construir negócios e posicionamentos de marca que façam algum sentido social.

Por essas e por outras que, há mais de 20 anos, tenho mantido um dos meus pés na propaganda e o outro, bem firme, nas ciências sociais. Afinal de contas, sempre acreditei que o consumo contribui para a construção de nossa identidade. Mas não só. Há outros fatores que influenciam, interferem e por vezes determinam nosso entendimento acerca de nós mesmos e dos outros em nosso processo de construção da realidade.

Mas, de repente, – opa – vem esta epidemia. E enquanto historiadores identificam o que pode ser (finalmente) o fim do século XX, seguimos às voltas (uns mais, outros menos satisfeitos) com as dessemelhanças da modernidade.

Tanto quanto é curioso que “como fazer pão” seja a pergunta que mais temos feito ao Google , tenho tido a possibilidade de, como nunca, contribuir com algumas marcas e, logo, com a propaganda, e justamente a partir das minhas formação e vivência como publicitária e (não ou) doutora em ciências sociais.

Porque só agora, pasmem, as marcas não podem falar só de si mesmas. É preciso que seus discursos estejam dotados de sentido social. Por isso temos podido realmente conversar – com mais vagar e com muito mais vigor – sobre sociologia e antropologia do consumo. Sobre o papel da recepção e do receptor na construção dos posicionamentos e da imagem das marcas. Sobre as tentativas de compreensão e de predição que as ciências sociais sempre fizeram sobre os dilemas do eu e do outro. Ou mesmo de como ocupamos (ou não) o espaço urbano em busca de novos lugares e não-lugares – a partir do consumo e do não-consumo e de tantas outras formas de ser e de estar no mundo. No poema da Cecília Meireles, é uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! Discordo. E felizmente, pareço não estar só.

No Fórum Econômico Mundial deste ano, um novo modelo de capitalismo foi apresentado como um manifesto: o “capitalismo de stakeholder”, ou “capitalismo das partes interessadas”. Ele se contrapõe ao chamado “capitalismo de acionistas”, em que os sócios são a única parte interessada; assim como ao “capitalismo de Estado”, que reconhece o setor público como instância de regulação.

Tipologias à parte, o fato é que o capitalismo de acionistas ainda é preponderante e seu estágio avançado não resultou em outra coisa senão em modelos neoliberais de concentração de riquezas, saturação dos recursos naturais, toxicidade das relações de trabalho, produção e consumo exacerbados, e que mesmo a China, expoente do capitalismo e epicentro da epidemia, vem replicando.

É por isso que me estarreço diante do que o mundo da moda, por exemplo, definiu como “revenge buying”. Na prática, a expressão pode ser traduzida pelo retorno afoito ao consumo, especialmente de luxo, que representou o equivalente a US$ 2,7 milhões vendidos pela grife Hermés, em Guangzhou, logo no primeiro sábado após a reabertura do comércio, no sul da China.

Segundo a Fundação Altagamma, associação comercial italiana de fabricantes de produtos de luxo, os consumidores chineses foram responsáveis por 90% do crescimento deste mercado, em 2019, e por cerca de 35% do valor de todos os bens de consumo de luxo vendidos no ano passado. E é esse comportamento, à moda Becky Bloom, represado e preservado no período de distanciamento social, que parece querer voltar à tona. Ou se tem saúde ou se vai às compras.

Por outro lado, que a mim parece menos delirante, a sociedade vem se juntando ao que cientistas sociais, economistas, alguns empresários e editores especializados em jornalismo econômico nos EUA e na Europa vêm definindo como capitalismo do século XXI.

Em 2013, numa palestra intitulada “Making the corporation work for us”, o professor de Oxford Colin Mayer já destacava a necessidade de se construir uma relação de confiança entre empresas e sociedade, almejando não apenas os resultados (ou lucros) de curto prazo, mas assegurando os interesses de clientes, funcionários, fornecedores e comunidades do entorno.

Mas vejam bem, isso não é o mesmo que apregoar que empresas e marcas devem ter propósito, essa roupagem da moda. Refiro-me a um modelo de capitalismo responsável, conduzido a partir da ciência dos anseios da sociedade e dos consumidores acerca do papel das empresas e das marcas na vida em sociedade.

Neste aspecto, um tema estampado na capa das principais revistas de economia e negócios do mundo, é que a crise causada pela epidemia de Covid-19 fez reverberar uma tipologia de capitalismo e de sociedade ainda tímidos, mesmo que já postos à mesa no último Fórum Econômico Mundial, em Davos.

Um modelo que não se sustenta por oposições, mas equidade e ética, pautada pela necessidade de expansão de interesses compartilháveis. Um capitalismo de instituições notáveis, para usar a expressão do professor doutor Colin Mayer, e Oxford.

Sim, trata-se de um modelo muito pouco, quase nada usual. De toda forma, sinto-me grata porque, finalmente, poderemos ao menos desconfiar e refletir se o mundo é mesmo feito de opostos, ou se sobre isto ou aquilo.

Janaina Maquiaveli é autora dos livros “Cidades de Papel” e “Cidades em Miniatura”.