É lamentável que o governo tenha resistido tanto em adiar o Enem e que só tenha adotado a medida depois de posicionamento do Senado e questionamento de entidades estudantis à Justiça. Fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade com que a educação de base é oferecida mesmo nos períodos normais.
Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, para alunos que dispõem de tecnologias e apoio dos familiares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao ensino a distância, e muitos alunos não têm celulares ou computadores e internet de boa qualidade.
Mais lamentável ainda é que essa preocupação com a desigualdade de oportunidades entre candidatos de escolas públicas e particulares só chame atenção quando se trata do ingresso à universidade. Os movimentos que defendem o adiamento do Enem por causa da epidemia ignoram que, há décadas, o ingresso na universidade trata diferentemente os candidatos conforme a renda da família.
Muito mais grave é a desigualdade que atinge os esquecidos que não terminam o ensino médio, abandonam a escola antes ou fazem um curso tão ruim que não se atrevem a buscar vaga em universidade. A desigualdade educacional atual é antiga, não é culpa ainda (ou apenas) do atual governo. É herança maldita de governos anteriores, inclusive os últimos democratas-progressistas por 26 anos.
Durante toda a nossa história, relegamos a qualidade média da educação. Cuidamos dela apenas para os filhos de poucos, abandonando filhos de negros durante a escravidão e filhos dos pobres depois da abolição. Por 350 anos, marujos de navios negreiros recebiam ordem para não deixar escravos pularem no mar.
Os traficantes sabiam que o suicídio de um escravo era prejuízo, como jogar mercadoria fora. Nós não entendemos ainda que, ao abandonar a escola, o jovem está se suicidando socialmente e descapitalizando o país de seu potencial intelectual. Os traficantes de escravos não eram mais humanos e sensíveis do que nós, brasileiros republicanos.
Esse abandono escolar, como o salto ao mar dos escravos, decorre em parte da pobreza da família, exigindo que seus filhos trabalhem, mas decorre, sobretudo, da má qualidade e da pouca atratividade da escola. A maior parte delas são como navios negreiros para o futuro. A luta pelo adiamento do Enem mostra por um lado que, para nós, a educação é apenas um direito, e não o vetor do progresso.
Por outro lado, expõe o elitismo de nossos movimentos sociais que se interessam pelo direito de quem terminou o ensino médio, mas não o direito dos que abandonarão a escola antes do vestibular ou do Enem.