FABRÍCIO CARPINEJAR

Mineirão é Tropeirão

'Diferente de qualquer estádio no país, o mineiro não faz lanchinho assistindo futebol, não é pipoca, cachorro-quente, pizza, empada, como na tradição: ele bate um prato'


Publicado em 13 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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O concreto do Mineirão sempre treme. Receio que vá desabar. 
 
Ou pelo ânimo do resultado em campo, numa ligação elétrica direta entre os neurônios e as redes, ou porque todo mundo está mesmo de bucho cheio. 
 
São vendidas quinze mil unidades de porção de tropeiro por jogo. Praticamente todos os pagantes optaram pelo tira-gosto. Até já acho que o tropeiro deveria ser incluído no preço do ingresso, para facilitar a sua retirada. 
 
Isso esclarece também o ânimo e a energia sobressalentes da massa atleticana e cruzeirense. Não param de gritar para queimar as calorias adquiridas na hora. São obrigadas a emagrecer nos noventas minutos daquilo que consumiram em instantes de devoção e gula. 
 
Diferente de qualquer estádio no país, o mineiro não faz lanchinho assistindo futebol, não é pipoca, cachorro-quente, pizza, empada, como na tradição: ele bate um prato. Um bolão de um prato feito, com três andares coloridos, sendo o último feito da cobertura com vista ao céu da boca de um ovo frito (o famoso “zoiúdo”).
 
Da mesma forma que os atletas entram em concentração antes do duelo, famílias inteiras se revezam em estado de transe nessa preparação supersticiosa e inadiável nas arquibancadas. 
 
Seria o equivalente ao gaúcho se socorrer de carreteiro nas arquibancadas do Beira-Rio ou da Arena. Ou do baiano se debruçar num vatapá na Fonte Nova, Barradão ou Pituaçu. 
 
A partida pode estar acontecendo no meio da tarde ou da noite, debaixo de quarenta ou dez graus, não importa que o torcedor tenha almoçado ou jantado, não abre mão de devorar de pé uma comidinha caseira. O fanatismo depende desse ritual, há meio século é assim, o esporte abre o apetite, as catracas do estômago. 
 
Eu costumo ficar nervoso e perco a fome, apenas levanto aos lábios as minhas famigeradas unhas roídas. Mas os meus amigos de raiz sertaneja somem no intervalo e reaparecem com uma bandeja de isopor, frota armada de feijão, arroz, couve, bife de porco, torresmo e molho de tomate. Exibem 600 gramas de escândalo alimentar. 
 
Eles me oferecem com a certeza de que vou negar, por isso continuam gostando de mim. 
 
E o mais importante: nem sempre se servem de alguma bebida. Vão ao fundo da mistura no seco. Como se a água do feijão carioca já estivesse ancestralmente dentro da saliva. 
 
Tento entender como eles mastigam sem olhar para o pratinho, vidrados nos movimentos dos jogadores. É muita astúcia no escuro. 
 
Às vezes perco algum lance para decifrar o mistério. O maior deles é como cortam o pernil com um talher de plástico. Ele verga até o último estalo, escuto inclusive o barulho da distensão!, mas não quebra. 
 
É mais simples comer sushi e sashimi com um único pauzinho. O hashi da refeição japonesa é o jardim de infância perto da habilidade e do domínio do comensal da quentinha da Dona Sônia. Eu não agiria com igual paciência, e pegaria a carne com os dedos. 
 
O hábito explica o bom humor do mineiro diante da eventual derrota. Mesmo com o placar adverso, a torcida abandona o Gigante da Pampulha feliz e fornida. Se não pode exaltar a equipe, ainda tem a esperança de elogiar o tropeiro.

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