FABRÍCIO CARPINEJAR

O Além é aqui

'Todo mineiro gosta do que não entende, dos mistérios entre o céu e a terra, supersticioso com as andanças perdidas das almas penadas.'


Publicado em 21 de junho de 2020 | 03:00
 
 
 
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Há o cultivo das histórias sobrenaturais, quando todos se reúnem no interior durante o aniversário da matriarca ou do patriarca. 
 
Nenhuma criança perde a sessão de terror e suspense ao redor do fogão a lenha, no alto da madrugada, perto da hora de dormir. Ela estranha que não foi posta na cama e a esqueceram ali no papo de adulto. Fica quietinha para não chamar atenção, engolindo o torresmo do susto sem fazer barulho com os dentes. Finge coragem, com os olhos arregalados e a pele suando frio, para ouvir, até acabar, o causo de fantasmas. 
 
Todo mineiro gosta do que não entende, dos mistérios entre o céu e a terra, supersticioso com as andanças perdidas das almas penadas. Talvez tenha a ideia que Minas é tão bão que, mesmo depois de morrer, ninguém consegue ir embora. Nem o fim termina com o apego, materializando a ideia de que realmente é difícil se desencarnar da delícia do chão de ferro. 
 
Existe uma ligação familiar pela esperança, e também pelo medo. Pela alegria de dividir, juntinhos, pela voz dos mais velhos, com a claridade bruxuleante da lua, o terror e o inexplicável. 
 
Vejo um respeito aos finados a ponto de ainda enxergá-los completando alguma missão. Nada impede de seguirem a sua vocação de alertar para algum perigo. 
 
Muitas das lendas chegaram em Belo Horizonte, como a Loira do Bonfim. Uma moça linda e atraente, vestida de branco, que conquistava os homens nas festas e os levava para a sua residência. Quando eles desembarcavam no lugar, era um cemitério e os olhos dela então brilhavam, como fogos-fátuos, na caveira lisa. Seria uma noiva largada no altar no dia do casamento e que se suicidou devido à vergonha. 
 
Em Machado (MG), uma personagem folclórica é a Maria do Cemitério da Saudade, coveira e zeladora que vivia entre as tumbas e jazigos, há três anos falecida. Testemunhas ainda a avistam de madrugada caminhando com sua mortalha preta e prata, vigiando as lápides de seus dez filhos. 
 
Na maior parte, são contos rurais, com enredos semelhantes e variações dependendo da região. O clássico é de um casal jovem que se mata apaixonado, desgostoso por não poder ficar lado a lado pela oposição ferrenha dos pais. Eles aparecem ou tocando piano (o piano é sempre o baú dos defuntos) ou correndo de mãos dadas nus pela mata. Qualquer canção ao longe ou latido dos cães dá sentido aos calafrios. 
 
Como as estradas montanhosas têm um sentido místico de único acesso para alcançar pequenas cidades, sobram relatos de mortos pedindo carona até o seu carro destruído no penhasco. Quem já não ouviu algo parecido? 
 
Ainda, na tradição do arrepio, vigoram versões do velho do saco. Um eremita que perdeu os seus filhos e a esposa, maltrapilho e barbudo, sedento por vingança, que colhia com o seu alforje gigante meninos e meninas que estavam brincando inconsequentemente de noite na rua. 
 
Na casa da minha esposa, ele recebia o sobrenome de Grimaldi, que aumentava a veracidade do ocorrido. Nem posso falar “Grimaaaldi” de brincadeira que ela vai querer passar a noite inteira com a luz acesa. Sua infância volta intacta, receosa dos barulhos na janela e com os movimentos debaixo do colchão. 
 
Os desenganos vinham envolvidos em uma tragédia, trazendo uma realidade emocional interrompida pelo malogro de um acidente ou de uma fatalidade. Mostravam, ao cabo, uma lição de moral para a obediência de horários e de costumes. 
 
Mineiro não acredita no além, ele jura que está  por aqui.

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