Tio é tio. Você recebe o parentesco da família e não vai a fundo no perfil. Acaba sendo tio para o resto da vida: “meu tio” ou “o tio”.
Foi assim que um adolescente mineiro, aspirante a escritor, que datilografava seus poemas numa Olivetti verde para suas paixões não correspondidas, ganhou um convite inesperado de seu melhor amigo: “vamos visitar meu tio Paulinho?”
Não houve grandes explicações, pormenores, detalhes. Ambos veraneavam no Rio de Janeiro.
Quando chegou no apartamento no Leme, o jovem poeta se assustou com o tamanho da biblioteca. Os livros desafiavam o teto. Até para sentar no sofá, precisava arrastar alguma obra para o lado.
Magro e quase inteiramente calvo, o tio Paulinho surgiu na sala oferecendo café e copo de água. Recém voltara do seu trabalho. Como um bom mineiro, puxou assunto por educação, jamais querendo ser indiscreto. Perguntou onde ele estudava em Belo Horizonte e o que gostava de ler.
Não parecia ninguém importante, um tanto reservado, um tanto atencioso.
O que inspirou o adolescente a matraquear a respeito de literatura. Já tirou dois textos do bolso, escritos na noite anterior, e começou a ler, e depois a explicar os seus versos.
E, diante do silêncio enigmático de Paulinho, falava inflamado, como que preparando um aluno retardatário para a prova final do ano.
“Esse poema… Eu construí em decassílabos, versos com dez sílabas poéticas. Quis imitar o tom heroico de Camões, com sílabas tônicas nas posições 6 e 10, obrigatoriamente, tendo mais uma ou duas sílabas tônicas complementares.”
O adolescente tinha certeza que se dirigia a um leigo. Não parava de se desculpar pela sua erudição. Todo início de frase era antecedido por “não sei se ocê sabe”.
Paulinho soltou um riso contido pela jovem visita: por sua exibição arrebatada, pela oratória, pela vontade louca de expor os seus sentimentos.
Depois, já na praia, já de calção, o rapaz partilhava com o amigo a impressão do encontro.
- Tio Paulinho é joia, uma santa figura, mas é meio quietão, né? Só não sei o que ele faz.
- Paulinho é escritor.
- Escritor? Tá brincando, uai. Escritor de que trem?
- De poemas e crônicas. Tem vários livros. Escreve na revista Manchete.
- Como ele se chama?
- Paulo Mendes Campos.
Neste momento, ele se afogou no seco. Estivera frente a frente com um dos maiores poetas do país, sem reconhecê-lo. Como não desconfiou do tio Paulinho, como não viu o sinal escancarado do seu imenso acervo?
Conhecia o longo poema “Infância” de cor e salteado:
“Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.”
Havia transcrito para seu caderno a crônica “O Amor Acaba”:
“Em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.”
E agora ele sentia uma profunda vergonha de sua afetação. De sua falta de respeito. De sua arrogância de recitar os próprios versinhos. Da impropriedade de ter falado demais e escutado de menos. Não confessou a sua admiração, demonstrou pouco caso com a história de um dos integrantes do famoso quarteto de mineiros que desembarcou na capital carioca, junto de Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino.
Hoje, adulto, sempre que ele passa pelo busto de tio Paulinho erguido na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, realiza o sinal da cruz e pede desculpa.
Faça login para deixar seu comentário ENTRAR