FABRÍCIO CARPINEJAR

Olfato do mineiro jamais dorme

'O aroma das panelas é mais prático do que o alarme dos celulares. E mais indolor.'


Publicado em 19 de julho de 2020 | 03:00
 
 
 
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Quer acordar mineiro?
 
Não sofra aumentando o volume da televisão,  puxando as cobertas, jogando água no rosto, gritando, insistindo, agendando soneca, iniciando guerra de travesseiros, propondo o golpe baixo de convocar os filhos pequenos a pularem em cima. 
 
O despertar pode ser absolutamente silencioso. 
 
Apenas cozinhe. Mineiro não resiste a um cheiro de comida de madrugada. Seu olfato jamais descansa. 
 
O aroma das panelas é mais prático do que o alarme dos celulares. E mais indolor.
 
Ele surgirá no corredor como um fantasma. Perguntará o que está fazendo por educação, porque conhece a resposta, tem consciência de que é exatamente aquele mexidão dos sonhos.
 
Sentará na mesinha da cozinha, com os olhos chineses de remela, sob alegação interesseira de que deseja fazer companhia. 
 
Ora bolas, nunca fez companhia, nem para assistir noticiário, nem na hora do supermercado, nem para estender as roupas, nem para lavar a louça...De repente, preocupa-se em fazer companhia? 
 
Generosidade demais é sempre fome. 
 
Para que ter o trabalho de levantar sozinho, abrir a geladeira e procurar restos frios se pode ter uma quentinha à disposição em sua frente? 
 
Mineiro só larga o prazer de dormir pelo prazer maior de comer.
 
Uma das grandes malandragens do casamento no final de semana, por exemplo, é  acordar quando o café da manhã já está pronto. O preguiçoso rola na cama enquanto fareja um por um dos ingredientes sendo feitos. Tem o timming das bocas do fogão. Não se precipita. Notando que tudo se aquietou e pousou na mesa, decide se levantar. 
 
Desfruta assim do serviço de hotel sem a necessidade de pagar a diária. Melhor vida, não há. 
 
Numa dessas noites insones da quarentena, enquanto a minha esposa dormia como um rochedo e eu maratonava uma série, pensei em preparar queijo com goiabada. Não teria ninguém para reclamar do excesso e da gordice. Atravessaria, incólume, as reprimendas da dieta a dois. 
 
Despontei no quarto com uma travessa de oito lascas brilhantes e decoradas. Ao colocar lentamente, saborosamente, a primeira jangada curada e adocicada na boca, minha mulher que se encontrava em transe profundo, sentou-se na cabeceira de olhos fechados e roubou o pedaço no ar, tal tigre ninja. Não contei com poder de reação. Perdi o apetite pelo susto. Passei a acompanhar o seu rodízio frenético. Seu organismo, pelo jeito, não computou o jantar e abstraiu a sobremesa. 
 
Comeu sem parar, numa sequência voraz. Ela aniquilou em minutos a bandeja que demorei um bom tempo para montar. 
 
Quando acabou (não entendi como viu se estava de olhos fechados), deitou novamente e  voltou a dormir, ronronando de feliz. Como se nada tivesse acontecido. 
 
De manhã, ela não se lembrava de coisa alguma, ainda reclamou que parecia que não tinha escovado os dentes antes de deitar. 
 
Nem falei o que testemunhei. Dissimulei com um desinteressado “que estranho, você escovou os dentes ao meu lado”. 
 
Fingi que foi um sonho para ela e um pesadelo para mim. Não é saudável contrariar um sonâmbulo.

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