Naná já ultrapassou os noventa anos. Após quase um século de vida não se pergunta mais a idade. É constrangedor para quem questiona, não mais para quem responde.
Esqueça tudo o que você entende da velhice. Ela não envelheceu, continua com a mesma magreza, esbelta, ativa, na firmeza de sempre. Quem a conheceu na adolescência não vai sofrer nenhuma dificuldade para reconhecê-la. Ela parou o tempo dentro de si.
Tia Naná é a mãe de todas as mães da família de minha esposa, a vó de todas as avós, a testemunha de toda a história, a única capaz de localizar as fotos antigas com data e lugar, de indicar quem era quem, de lembrar do que ninguém mais se lembra, é o voto de Minerva nas discussões, a diplomata dos impasses, a rezadeira do impossível.
Na hora do aperto com alguma dúvida da árvore genealógica, torna-se o Google dos parentes: “telefona para a tia Naná”.
Ela mantém uma doçura de jabuticaba em calda, que se descobre ao abrir o pote, a alma, cobrindo a conversa com uma lufada de aroma de fruta recém colhida.
Na aparência, mantém intocável o semblante compenetrado da timidez. Foi aquela menina que tirava 100 no boletim inteiro, menos em Educação Fisica. Fazia esporte contrariada, gostava mesmo de contas complicadas ou de redigir longamente.
Ia para o orfanato em Mariana na garupa de um burro, conduzido pelo seu pai Vitinho, por 92 quilômetros. Enganava o estômago com uma refeição por dia.
É prosear um pouco com ela que já sentimos o perfume adocicado de sua fala, dona de uma dicção sussurrada, feita no funil do ouvido, como se tudo fosse um segredo.
Nesta semana, ela caprichou com uma escova no cabelo para participar de uma reunião por vídeo com a família. Até tirou os óculos. Só não colocou batom para não humilhar.
Aquele que a vê pela primeira vez com o sorriso convicto e uma delicadeza serena no trato, não tem ideia de sua história sofrida.
Ela não reclama das dificuldades, não pragueja, não solta palavrão. Não fica se vangloriando de que na sua época era diferente, não se elogia, não enaltece nem as dores nas costas.
Pelo contrário, não cansa de agradecer a possibilidade de estar viva. Sua crença é de que não existe vida pequena para Deus, porque Deus está no interior de qualquer vida.
Por debaixo do seu véu, há um céu de cicatrizes.
Já esteve com morte decretada, e renasceu para espanto dos médicos, após coro religioso de amigos na porta do quarto. Enfrentou, simultaneamente, uma dengue hemorrágica, infarto e comprometimento total da vesícula por bactéria hospitalar. Em coma por semanas, acordou disposta como se estivesse brincando com o além.
Recém ficou viúva, há nove meses, e enterrou o seu companheiro de sete décadas de união com uma dignidade de anfitriã, consolando os netos e bisnetos. Não chorou, porque disse que não gastaria o tempo chorando se poderia estar rezando por ele.
Perdeu a mãe com onze anos e criou os seus oito irmãos como filha mais velha, cozinhando e trocando fraldas. Depois repetiu a maratona e enfrentou a maternidade de dez filhos.
Tornou-se uma das pioneiras a passar em concurso para trabalhar na Agência de Correios. Ela se sustentava quando a maior parte das mulheres dependia do marido.
Só que ela não se continha em apenas cumprir o seu serviço. Nos seus intervalos, interpretava as cartas para as pessoas que não sabiam ler e escrevia as respostas.
Ela surpreendia com os gestos de caridade. Já levou mendiga para dar banho e preparar jantar. Em Rio Espera (MG), sua cidade, alguns acreditam que é santa, mas ninguém duvida que é sábia. Inclusive, o padre a obedecia.
Tia Naná é um retrato no interior de um escapulário. Ponho no meu pescoço, como almofada do coração.
Faça login para deixar seu comentário ENTRAR