Na semana passada, após um curto período de internação num hospital de Roma, o escritor Andrea Camilleri despediu-se de nós. Tinha 93 anos, ao longo dos quais construiu a jornada de um dos mais importantes romancistas italianos da atualidade.
Tão bom o velho que foram criadas várias páginas nas redes sociais onde seus fãs, como eu, trocavam impressões sobre as aventuras do comissário Salvo Montalbano, o personagem mais famoso de seus romances.
Montalbano é realmente uma figura. Trata-se de um policial informal e brilhante, um tanto mal-humorado, que comanda uma equipe atrapalhada numa pequena cidade fictícia da Sicília, de nome Vigàta. Lá acontece de tudo – roubos, crimes passionais, sequestros, assassinatos, confusões com a máfia. O comissário é solteirão, sistemático, cheio de manias, cometendo barbeiragens ao volante de um Fiat Tipo caindo aos pedaços. Tem medo da velhice, da aposentadoria e odeia a burocracia à qual é submetido pelos seus superiores – gente insuportável.
Salvo tem um grande amor; Lívia; bela, sensual – e temperamental, como ele. Cada um mora em sua própria casa, em cidades vizinhas, e sonham em se casar. Mas têm medo da rotina e das prováveis brigas, já que os humores de ambos são bem italianos: apaixonados, independentes e imprevisíveis. Os episódios de Lívia e Salvo “discutindo a relação” são geniais; mostram o talento de Camilleri se divertindo com as sutilezas das almas masculinas e femininas dos dias de hoje.
Quando fica de saco cheio – dos chefes, dos bandidos, da máfia, das politicagens e até de Lívia –, Salvo Montalbano compensa os aborrecimentos à mesa, curtindo pratos maravilhosos do Sul da Itália tão bem descritos por Camilleri, que era um glutão. O comissário também tem o hábito de nadar pelado à noite, na praia defronte à sua casa, para relaxar. As aventuras de Montalbano e sua equipe fizeram tanto sucesso que viraram série de TV.
Andrea Camilleri também é responsável indireto por uma pequena conquista linguística de minha parte. Certa vez, passando pela Borri Books, livraria imensa dentro da estação Termini de Roma, comprei, às pressas, o último lançamento do mestre. Peguei o trem, recostei-me para ler e – mamma mia! – não entendi uma só palavra. Por engano, tinha comprado uma edição da Sellerio, em siciliano, idioma do autor. Inconformado, encarei o desafio. Baixei dicionários na internet, comprei gramáticas num sebo, insisti e hoje me orgulho de ler razoavelmente Camilleri no original – tolo capricho de um fã.
Para quem quiser curtir as peripécias do Comissário, sugiro alguns títulos publicados no Brasil: “A Paciência da Aranha”, “A Forma da Água”, “O Medo de Montalbano”, “Guinada na Vida”, “O Ladrão de Merendas”, “Excursão a Tíndari”, “A Voz do Violino”, “Lua de Papel”, “Um Mês com Montalbano”.
Andrea Camilleri também era um frasista extraordinário, com tiradas espirituosas que provocavam risadas de seus interlocutores. Dono de um coração cheio de ternura e romantismo, não disfarçava, entretanto, um impiedoso sarcasmo. Sobre seu sucesso literário, era modesto: “Escrevo apenas para devolver às pessoas um pouco de tudo aquilo que já li e que aprendi na vida.”
Antes de partir, isolado em sua casa em Santa Fiora, cidadezinha toscana da província de Grosseto (onde também se situa Pitigliano, terra dos Fabbrinis), publicou uma bela reflexão sobre a vida que chegava ao fim. Separei este trecho: “Quando a gente nasce, recebe um carnê com tudo: a beleza da juventude, os prazeres, as habilidades, as dores, as doenças, a velhice e a morte. Não podemos recusar nada, está tudo incluído no carnê; vamos gastando os tickets um a um, até acabar. Ou aceitamos essa condição da vida com serenidade ou viramos uns coglione (algo próximo ao nosso ‘babaca’). Bravo, maestro!