FERNANDO FABBRINI

Patrulinha momesca

Folião mal-enjambrado com um sutiã velho, saiote e batom, torna-se um escândalo aos olhos do comitê do comportamento imaculado


Publicado em 20 de fevereiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Mesa de reuniões de uma das maiores fábricas de caminhões do Brasil. De um lado, diretoria, pessoal do marketing e assessores. De outro, a equipe da agência de propaganda apresentando a campanha em homenagem aos caminhoneiros no Dia dos Pais.

No filme e nos anúncios, um motorista bonachão, diante de uma carreta com a logomarca famosa, dá um caminhãozinho de brinquedo ao seu filho. Imagens cheias de ternura, enriquecidas por inspirados textos dos quais não me lembro mais. Todos sorriem; é uma bela campanha. Súbito, um gerente da montadora pede a palavra, com ar preocupado:

– Peraí, pessoal! Esse caminhoneiro é tarado, pedófilo; está seduzindo o menino com um presentinho!

Lembrei-me do episódio lendo as recomendações da prefeitura aos foliões no Carnaval – exemplo de que o preconceito e a má-fé estão mais nos olhos de quem julga, como no caso lá do gerente. O texto é uma coleção de delírios e de clichês da moda na tentativa de sufocar o que o ser humano tem de mais saudável – sua espontaneidade.

Os autores do decálogo moralista querem censurar alusões a etnias, grupos humanos, gêneros e modos de pensar, apontando-as dedo em riste, tal qual Torquemada ou McCarthy. Disfarçadas numa linguagem descolada e postadas como “orientações”, não enganam ninguém: trata-se apenas de autoritarismo politicamente correto enfeitado com “glitter”. E, pelo estilo, sugere ter sido fruto de um grupo de trabalho após exaustivas e surreais polêmicas sobre semântica, substantivos e pronomes, resultando numa chatice consensual.

Fundamentalistas e radicais têm pânico do humor. Os bobos da corte eram pagos para zoar até da cara do rei, impunemente. Como impedir, então, que o tradicional deboche brasileiro, obrigatório no Carnaval como a cerveja, seja reprimido na farra de Momo?

Folião mal-enjambrado, com um sutiã velho, saiote e batom, torna-se um escândalo aos olhos do comitê do comportamento imaculado. Cocar de índio com penas de espanador é sacrilégio. Peruca de cabelo pixaim vira racismo. Até bandana de cigano e lantejoulas são ofensivas, segundo o acervo de tolices e pieguices.

Na minha opinião, o édito ainda gerou dúvidas: drag queens (homens!) podem fantasiar-se até que ponto sem agredir a dignidade feminina? Qual a medida tolerável em centímetros para peitos, bundas, cílios e saltos altos aprovada em assembleia? E o slogan “meu corpo, minhas regras”, perdeu a validade?

As reprimendas parecem típicas do ócio de burocratas enquanto problemas sérios são levados na brincadeira ou na embromação do pão e circo. No tom arbitrário, as tentativas de regulação das fantasias até se afinam com a essência da tal frase da ministra Damares: menino veste azul, e menina, rosa.

A propósito do que viveu a ministra – e à procura de imparcialidade e de equilíbrio no texto –, não achei, infelizmente, nenhuma recomendação da patrulha da temperança para coibir sarcasmos em torno de crianças vítimas de assédio e estupro. Nem uma linha em defesa de artistas agredidas na intimidade por conta de seus posicionamentos políticos. Como também nadinha sobre alegorias à facada no presidente, performance realizada em BH, no Carnaval passado, por uma turminha que não gostou dos resultados das urnas.

Portanto, após a “indignação seletiva”, acaba de sair às ruas o “bloco do não pode”. Estão sob suspeição municipal as fantasias de índio (nacional ou importado); nega maluca, black power, cortesã, mucama e até de árabe – imagino eu – pela referência ao patriarcado judaico-cristão. No entanto, camiseta vermelha e boina de estrelinha – tributo ao sujeito que fuzilava ciganos, donas de casa, parceiros, gays e camponeses inocentes –, aí, pode.

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